A democracia do “jeitinho” brasileiro

Passados seis meses do seu terceiro mandato, o governo do presidente Lula continua enfrentando problemas para ajustar a máquina administrativa do Estado e, enfim, recomeçar efetivamente seu trabalho em prol do nosso povo. Em uma democracia representativa como a nossa, o chefe do Poder Executivo, para desenvolver sua administração satisfatoriamente, será sempre de bom alvitre que esteja em permanente consonância política com Poder Legislativo, representado pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Isto significa, em outros termos, que qualquer dissonância política entre esses dois poderes poderá reverberar negativamente na administração do Estado e, por extensão, claro, na própria sociedade.

Mas, lamentavelmente, é isto precisamente o que estamos vendo acontecer no Planalto Central do Brasil. Ao tomar posse na presidência da República, Lula assumiu e retomou a responsabilidade de administrar o país. Pode-se dizer que ele o recebeu em um estado pré-comatoso. Infelizmente, uma espécie de “massa falida” deixada por seu antecessor Jair Messias Bolsonaro, pessoa notoriamente despreparada para a grandeza do cargo que exerceu por quatro anos. Não bastasse isso, Lula encontrou ainda no Congresso Nacional uma forte oposição, que tem dificultado sobremaneira a implantação do seu programa político apresentado durante a campanha eleitoral para a presidência da República. Além disso, e nessas condições, o chefe do Poder Executivo não tem maioria na Casa das Leis Federais e, portanto, as dificuldades para seu governo aumentam dramaticamente.

A essa altura, em face do jogo político em Brasília, por mais otimistas que sejamos, não podemos deixar de reconhecer que o governo do presidente Lula, pelo menos nesse momento, está fragilizado, justamente em face das condições que encontrou o país. A própria base de apoio político ao programa de governo no Congresso Nacional não tem demonstrado sua necessária fidelidade e solidariedade. Vamos esperar que isso mude. Afinal, como disse Otto Von Bismarck, “[…] a política é a arte do possível”. Espero que isto aconteça em nosso país. O governo tem trabalhado nessa direção. Alguns deputados de partidos políticos que integram a base de apoio do governo em votações na Câmara dos Deputados, chegaram mesmo a votar contra, impondo nada menos que quatro derrotas em cinco meses de governo. São elas:

1. O decreto de saneamento de 4 de maio, quando em votação, os Deputados derrubaram dois trechos do texto que eram promessa de campanha do presidente;
2. A aprovação da Medida Provisória (MP) 1.150 de 2022, remanescente do governo Bolsonaro, que inibe as normas sobre o licenciamento ambiental;
3. A questão do Marco Temporal, cuja posição do presidente Lula é pró-indígenas não passou na votação do plenário da Câmara Federal. Se dependesse da sua vontade, a demarcação das terras indígenas não poderia ser limitada a 5/10/1988, quando se dá a promulgação da Constituição atual. Lula defendia a atemporalidade para a demarcação dessas terras;
4. Três Medidas Provisórias (MPs) de interesse do governo perderam sua validade por não terem sido votadas dentro do prazo estipulado por lei na Câmara dos Deputados. Entre elas, destaque-se a Medida Provisória (MP) 1.156 de 2023 que pretendia transferir o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) do Banco Central para o Ministério da Fazenda.

Acontece que toda e qualquer matéria de Medida Provisória (MP) tem, necessariamente, um prazo para ser julgada procedente ou não, pelo Poder Legislativo. Se isso não acontecer dentro do tempo estipulado, ou seja, se não obedecer aos critérios do artigo 62 da Constituição Federal que lhe dá provisoriamente o status de lei, ela perde a validade e, portanto, torna-se obsoleta. Vale registrar, porém, que a Medida Provisória (MP) é um recurso usado pelo chefe do Poder Executivo em casos excepcionais, mas que produz efeitos imediatos para, posteriormente, ser aprovada ou não, pelo Poder Legislativo. Se aprovada, torna-se lei. Convém registrar que a votação de qualquer matéria na Câmara Federal, depende fundamentalmente do presidente desta Casa pautar para discussão em plenário. Isto não aconteceu dentro do prazo regulamentar. Conclusão: a MP em questão tornou-se invalidada pelo decurso de prazo.

O resultado prático disso é a insegurança e a frustração com seus aliados. Alguns congressistas, entre eles Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados e líder do grupo político conhecido pelo nome de “Centrão”, alegam publicamente a falta de articulação política por parte do governo e, por este motivo, tem sofrido derrotas preocupantes para a implantação do seu programa de governo.

Não, não é isso. Sejamos centrados, imparciais, mas com criticidade, simultaneamente. Vamos com calma analisar os fatos. Primeiramente, uma verdade é incontestável: o presidente realmente não tem maioria no Congresso Nacional e isto é um sério empecilho que, com o apoio do presidente da Câmara, poderia vir a ter essa maioria tão importante para apoiar seus projetos, mas isso não tem acontecido A explicação mais primária e, ao mesmo tempo maledicente, é que o chefe do Executivo tem sido ausente nessas discussões. Uma informação meramente protocolar para que os media divulguem as viagens do presidente ao exterior como se fosse passear e deixasse que as decisões a serem tomadas pelo Chefe do Poder Executivo ficassem sob a responsabilidade do vice-presidente e de seus assessores.

É claro que uma parte da opinião pública não tão afeita aos acontecimentos políticos do Planalto Central, pode acreditar que realmente o presidente foi passear no exterior. O leitor certamente já ouviu em algum momento, alguém falar que o presidente só fica viajando. Já aconteceu de ouvir de um aluno, que os presidentes só viajam e não estão preocupados com o povo. Aproveitei sua fala e expliquei a necessidade de presidentes viajarem ao exterior em benefício do seu país. No caso específico do atual presidente, é claro que os políticos sabem que isso não procede, mas a oposição ao seu governo capitaliza e publiciza muito rapidamente este fato, que é rigorosamente um factoide, ou seja, falsa informação que, repetida várias vezes toma-se como verdadeira. Aliás, algo muito semelhante ao que disse o sociólogo Jean Baudrillard sobre a notícia e a informação. Para ele, o excesso de informações tende quase sempre a gerar a desinformação. Esta observação ele fez ao observar os acontecimentos e os noticiários sobre a Guerra do Golfo em 2003, quando algumas cenas foram transmitidas ao vivo.

Ao mesmo tempo, em face das suas frequentes viagens, há uma clara alusão ao fato de que o presidente Lula tem priorizado sua agenda à retomada da posição do Brasil no cenário internacional, depois que o governo Bolsonaro isolou o país do seu protagonismo internacional, levando-o à condição de mero coadjuvante, quando muito. Mas, nosso presidente, a meu ver, está agindo corretamente. É preciso reorganizar a “sala de visitas” para que os dólares cheguem ao Brasil para ficar, mas em forma de investimentos oficiais em nossa economia e não de especulação. Afinal, como se trata de um país de regime capitalista, não podemos deixar de pensar no capital (não no Capitalismo selvagem), mas sempre de forma humanizada e não apenas na volúpia do lucro, na acumulação do capital.

Assim, poderemos minorar sensivelmente a taxa de desemprego no país e, por extensão extirpar a fome que assola trinta e três milhões de brasileiros, segundo o IBGE. Nos últimos quatro anos ficamos completamente isolados dos acontecimentos e decisões de órgãos internacionais, como se fôssemos uma pequena, inóspita e inexpressiva ilha do Atlântico. Pode parecer exagero, mas não é. Nessas condições, portanto, é indispensável que o presidente prossiga com sua política no plano internacional para reintroduzir o país na política global e, evidentemente, na economia com seus parceiros de uma nova ordem mundial que se configura justamente a partir do conflito entre Ucrânia, Estados Unidos e OTAN, de um lado, e Rússia de outro.

O entendimento entre os poderes Executivo e Legislativo é a condição sine qua non para que o país possa realizar políticas públicas capazes de nos redimir do atraso dos quatro anos da gestão de Bolsonaro. O atual presidente da Câmara dos Deputados, efetivamente não tem feito nenhum esforço político dentro do Congresso Nacional para colaborar com o presidente da República, no sentido de manter seu programa de governo especialmente na área social. Com certeza, a mais carente de atenção e investimentos por parte do governo anterior, que a entregou destroçada, completamente aniquilada ao presidente Lula. Nada se pode afirmar, mas existe a possibilidade de que as eleições de 2026 já estejam influenciando nas decisões do presidente da Câmara dos Deputados.

Sendo assim, não há nenhum interesse deste político em colaborar para uma boa gestão de Lula. Isto é politicamente reprovável e absolutamente inaceitável. Sim, inaceitável, porque prevalece em sua atuação no Congresso Nacional, os interesses de um grupo de políticos do qual ele faz parte, afinal, é o seu líder, mas que nada tem a ver com as necessidades prementes da população, especialmente das pessoas desvalidas como, por exemplo, os trinta e três milhões citados anteriormente. É nesse momento que sua atuação claudica na condição de presidente da Câmara dos Deputados. Convém registrar, que este senhor já está no cargo desde a época de Bolsonaro, por quem sempre demonstrou simpatia e empatia. Não se sabe, mas talvez estes dois substantivos estejam diretamente ligados ao fato de ser empresário do agronegócio, um setor da economia sempre priorizado e protegido pelo governo anterior, atitude que deveria ser extensiva a todos os setores da produção, mas isso não aconteceu.

Seu trabalho na Casa das Leis a favor do ex-presidente, pode comprovar minhas palavras. Isso, no entanto, não impediu que o ex-presidente seja o que mais sofreu derrotas no Congresso. Apesar de ser um político extremamente habilidoso (é ele quem controla o Centrão, a maior bancada no Congresso), falta a Arthur Lira a isenção e o espírito republicano. Bolsonaro só passou a ter seus projetos aprovados, após render-se à força política do Centrão e ceder espaço no âmbito do Poder Executivo. Foi a alternativa encontrada pelo ex-presidente e que agora, tudo leva a crer que, para realizar seu projeto político, o presidente Lula também deverá fazer acordos com este grupo liderado pelo presidente da Câmara. Enfim, são coisas de um Congresso que, rigorosamente, uma parte considerável pratica muito pouco a democracia representativa e não trabalha pelos interesses e necessidades do seu povo.

Uma coisa, porém, é certa: a autonomia do presidente da República fica inexoravelmente comprometida e dependente de interesses outros, que não a boa governança em benefício do eleitor, do Estado e da sociedade. Mas, não deixemos nos ludibriar. Este é apenas um exemplo, entre tantos outros, do conhecido “jeitinho brasileiro” sendo usado no processo de uma duvidosa consolidação da democracia em nosso país. E o presidente Lula não terá alternativas melhores para colocar em prática seu programa de recuperação da dignidade das populações à margem do processo produtivo, entre tantas outras ações que terá de realizar durante sua governança. Por situações como esta é que podemos constatar a força política do atual presidente da Câmara dos Deputados. Nessas condições, o chefe do Poder Executivo se vê enredado em uma situação de dependência e de difícil solução.

Como autoridade e líder do Poder Legislativo, Arthur Lira não colabora e não tem demonstrado interesse em que o presidente Lula tenha seus projetos aprovados e realize boa gestão. E aqui são muito precisas e inteiramente procedentes as palavras do filósofo Aristóteles, quando fala sobre os políticos. Diz ele em seu livro Política, ao desenvolver o estudo sobre a teoria Geral do Estado, que “a política não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça”. Não é isso o que acontece no Planalto Central do Brasil. Como presidente da Câmara dos Deputados Federais, este senhor tem muita força política no tocante às decisões que devem ser tomadas para melhorar o país e a vida do nosso povo. Até porque, é ele, por direito e obrigação, quem elabora a pauta para discussões em plenário. Seu poder, porém, não fica apenas nisso. A elaboração dessa pauta, muitas vezes em momentos cruciais, segue critérios de interesses de grupos, especialmente do famoso Centrão, um poderoso e numeroso grupo de partidos políticos que domina a cena política no Congresso Nacional. Ao chefe do Poder Executivo, resta-lhe a alternativa de procurar acordar-se com o presidente da Câmara para prosseguir com seu projeto de recuperação do país.

Ocorre que quase sempre acordos dessa natureza terminam por desfigurar o programa do governo em face das reivindicações da oposição, que não são poucas. Elas vão sempre ao encontro de interesses que raramente se harmonizam com aquilo que a sociedade necessita. Tanto é assim, que o próprio presidente Lula tem solicitado aos seus Ministros que liberem o mais rapidamente possível, cargos de primeiro e segundo escalões para acolher pessoal da sua base de apoio que, em certos momentos, age como se fosse oposição. Mas, as reivindicações dos adversários políticos não param por aí. Em uma conversa entre os presidentes Lula e Arthur Lira, para que o país seja administrado sem atropelos da oposição e até mesmo de uma parte da sua base de apoio (e isto já aconteceu), o Ministério do Turismo, muito provavelmente será cedido a outro político do União Brasil, um partido político integrante do Centrão.

Convém registrar, que alguns partidos políticos desse conglomerado chamado Centrão têm forte resistência em apoiar o governo de Lula, se não receberem as vantagens que reivindicam. Não são poucas e nem caberiam todas neste artigo. Apenas como exemplo, quero citar o União Brasil, MDB e PSD. São alguns dos partidos que reivindicam cargos e vantagens. Enfim, caro leitor, coisas corriqueiras da política, mas muito bem interpretadas pelo aforismo “é dando que se recebe”, frase atribuída a São Francisco de Assis, em outro contexto, evidentemente, em uma de suas orações. Pois é nesse momento que a força política do cargo de presidente da Câmara dos Deputados entra em cena. Ao chefe do Poder Executivo, resta-lhe administrar da melhor forma possível esta situação para não desfigurar seu projeto político apresentado ao eleitor durante a campanha eleitoral. Até porque, é exatamente nesse momento, que o presidente da Câmara transforma seu poder político em poderosa moeda de troca.

Ora, é certo que o debate político é algo próprio e natural da democracia. Devemos sempre estimulá-lo porque é assim que se avança e se aprimoram as ideias para a boa formação do Estado democrático de direito e o bem-estar da sociedade. Mas, passados seis meses de mandato do presidente, as realizações do governo estão aquém do seu cronograma em face das resistências encontradas no Poder Legislativo. As quatro derrotas no Congresso Nacional mencionadas anteriormente, além de já desfigurarem seu programa de realizações, causam impacto negativo em boa parte da população que passa a ver o presidente apenas como um turista que viaja muito para o exterior. Mas, claro, não é nada disso e já analisamos esta situação no início deste artigo.

O fato é que o presidente tem uma forte oposição à sua administração e, ao mesmo tempo, uma base de apoio muito instável, vulnerável e temperamental. Em determinados momentos ela vota com a oposição, certamente esperando que o governo lhe ofereça mais vantagens em próximas votações. Para usar a linguagem futebolística, a base de apoio do presidente marca gols contra. Esta situação, é claro, fragiliza sobremaneira o governo e motiva seus adversários dentro do Congresso Nacional a cometer absurdidades como, por exemplo, pedir o impeachment do presidente. Apenas para registrar fatos dessa natureza, até março de 2023, a Câmara dos Deputados registrou nada menos que seis pedidos de impeachment ao presidente Lula. As motivações para isso, se não fossem uma estultice, poderiam ser vistas como algo pueril; brincadeira de criança. Os adversários do governo entendem que as seguintes atitudes do presidente justificam a abertura de um processo de impeachment. São elas:

1. ter afirmado que o impeachment à ex-presidente Dilma Rousseff teria sido um golpe de Estado;
2. a responsabilização pelos ataques ocorridos ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e outras instituições federais, no dia 8 de janeiro de 2023;
3. tentativa de impedir a abertura da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI);
4. pronunciar-se dizendo que a Venezuela é vítima de narrativas construídas por opositores;
5. receber no Brasil o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro;
6. indicar Cristiano Zanin Martins para uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Deve-se registrar ainda que há um pedido de impeachment ao presidente com 47 assinaturas de deputados, entre eles, quatro parlamentares de partidos que formam a base de apoio do governo. São eles:

1. Sargento Fahur (PSD-PR),
2. Delegado Palumbo (MDB-SP),
3. Thiago Flores (MDB-RO) e
4. Rodrigo Valadares (União Brasil-SE).

Como podemos observar, a base de apoio do presidente é um fator de grande preocupação para a estabilidade política, bem como para os projetos do Poder Executivo e, por extensão, claro, para o funcionamento regular da administração do Estado. Se por um lado, a Constituição brasileira de 1988 assegura a qualquer cidadão o direito de pedir o impeachment de políticos que tenham sido eleitos pelo sufrágio universal, de outra parte, este ato tem sido banalizado em nosso país. Esta solicitação não deve ser feita de forma aleatória e arbitrária. É necessário que haja um substrato, um motivo muito forte e claro para que este pedido seja acolhido pelo Congresso Nacional.

A oposição não teve este cuidado. As leis não são como ironizava Otto Von Bismarck, político e diplomata alemão do século 19, quando dizia: “Leis são como salsichas. É melhor não ver como elas são feitas”. Deve-se deixar claro, no entanto, que não é necessário ser especialista em Direito Constitucional para se perceber que os motivos apresentados pela oposição não podem prosperar. Eles têm um caráter muito mais revanchista e, ao mesmo tempo, carecem de respaldo jurídico para se depor um presidente da República. Portanto, pelo menos nesse momento, a oposição não foi feliz em suas intenções. Ou está desinformada, o que não é crível ou, deliberadamente, tomou uma atitude notoriamente desagregadora e infeliz. Em uma democracia ainda fragilizada como a nossa, protocolar um pedido de impeachment ao presidente da República sem reais motivos e nenhuma base jurídica é uma insanidade, não soma nada, é torcer pela desgraça. Se ele prosperasse, por exemplo, tumultuaria o ambiente político do país e faria com que a máquina administrativa do Estado emperrasse, mesmo antes do resultado da votação no Congresso Nacional.

Recentemente já tivemos dois casos muito dolorosos para o país com os impeachments dos ex-presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff. Sempre que acontece um fato político dessa magnitude, além de ser algo traumático para o Estado e a sociedade, as instituições democráticas correm perigo, tornam-se frágeis porque o resultado político deste acontecimento fica por conta do imponderável. Pode nada mais acontecer, mas pode também haver reações das mais diversas e de proporções imprevisíveis como, por exemplo, uma rebelião popular e de forças bélicas oficiais dissidentes, a enfrentar os aparelhos repressivos de Estado para restabelecer a ordem e as funções administrativas do Estado de direito.

Isto é o que há de mais danoso ao país. Alguns políticos brasileiros tratam seus opositores, não como adversários e sim como inimigos. Talvez por isso, a figura jurídica do impeachment seja invocada de forma quase sistemática no Congresso Nacional. Isso enfraquece o debate democrático, da mesma forma que o deplorável recurso conhecido por “jabuti”, uma espécie de “jeitinho brasileiro” do mal, propicia futuros atos desonestos de políticos corruptos. Algo perverso que consiste em introduzir sorrateiramente, às escondidas e, obviamente sem o conhecimento do autor do projeto, textos de leis a serem discutidos na Câmara dos Deputados. Este é um procedimento bem mais recorrente quando se trata de Medidas Provisórias (MPs), em face da urgente necessidade de se aprovar o texto da lei. Mas este é um ludibrio que não lesa apenas os colegas de parlamento. Lesa e ludibria, sobretudo, toda a população do país, com exceção apenas dos malfeitores que articularam o golpe do “jabuti” e seus favorecidos fora do Congresso Nacional. Nunca se sabe quem são os autores dessas manobras fraudulentas. Certamente por isso é que se atribui a Ulysses Guimarães, quando presidente da Câmara dos Deputados, ao constatar a presença de “jabutis” sem autor aparente em textos de leis que deveriam ser aprovadas, a frase: “jabuti não sobe em árvore. Se ele está lá, foi enchente ou tem mão de gente”.

Todo o desejo de colaborar com as leis do país é bem-vindo. A negociação é um instrumento natural do regime democrático. Estou seguro de que a imensa maioria dos eleitores e da população brasileira espera ação e harmonia entre os Poderes Executivo e Legislativo, algo indispensável em qualquer situação e momento histórico. Ao mesmo tempo, um fato cada vez mais difícil de acontecer em nosso regime de democracia representativa. Mas, só assim o país poderá crescer, desenvolver-se e, quem sabe um dia, nossos políticos possam, efetivamente, fazer a felicidade do seu povo cumprindo rigorosamente com o tão falado, imprescindível, mas, ao mesmo tempo esquecido (que ironia!), artigo 3° da nossa Constituição. Assim, tudo estaria bem, muito bem em terras de Pindorama. A justiça social finalmente seria feita e a grande massa excluída teria, com o apoio do Estado, a oportunidade de tornar-se novamente força produtiva e recuperar sua dignidade. Aí sim, teríamos um “jeitinho brasileiro” do bem, sem espertezas oportunistas, sem maracutaias, fisiologismos e “jabutis”, mas algo feito com inteligência, transparência e honestidade. É isso o que a sociedade espera de seus políticos e governantes. Nessas condições, que seja muito bem-vindo o “jeitinho brasileiro” do bem.


Waldenyr Caldas é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e articulista do Jornal da USP.

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