As reformas judiciais são sempre uma questão difícil. Em 1936, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos e candidato à reeleição, enfrentava uma crise decorrente, dentre outros motivos, da quebra da bolsa de valores de 1929. Roosevelt venceu as eleições de 1936 com uma vantagem avassaladora. Sabendo que a Suprema Corte poderia ser um obstáculo ao seu New Deal, ele propôs a reforma do Judiciário Federal dos Estados Unidos nos primeiros dias de seu novo mandato (fevereiro de 1937). O projeto de lei de Roosevelt foi rejeitado no que dizia respeito à Suprema Corte. A história tem dois lados. O lado que interessa: o Supremo Tribunal Federal já não interferia tão negativamente na implementação do New Deal. O ator e humorista Cal Tinney, percebendo a mudança de posições nas votações dos ministros do STF, cunhou a expressão “a mudança a tempo de salvar os nove”, em alusão às nove cadeiras da Corte.
Depois de Donald Trump, a Suprema Corte dos EUA passou a ter seis juízes de tendência mais conservadora e apenas três juízes de tendência mais liberal. Mais uma vez, surgiu um debate sobre a reforma judicial. Imediatamente, os liberais quiseram mudar a composição da Suprema Corte. Eles não usam mais a terminologia “Pack the Court”, experimentada por Roosevelt. Hoje eles usam “Fix the Court”.
O Brasil também passou por uma Reforma do Judiciário em 2004, com a edição da Emenda Constitucional 45. Nessa reforma, veio uma novidade: o Conselho Nacional de Justiça. O CNJ foi considerado uma solução para a questão disciplinar no Judiciário, mas se inseriu em tantas áreas que ainda não atingiu seus objetivos originais. É importante lembrar que até a ideia do CNJ foi acusada ferozmente de ser violação da independência judicial.
A noção de reforma judicial não é exclusiva de Israel nem uma aspiração exclusiva dos partidos de direita. E, o mais importante, sempre será um tema que causa debates acalorados. A ideia de reforma judicial tem sido constantemente atacada com argumentos ad terrorem, como se toda reforma fosse erradicar a independência judicial. O que não é, necessariamente, uma verdade.
Vamos abordar a “reforma” em Israel em três pontos nos quais ela está baseada. O primeiro deles altera a composição do Comitê para a seleção de magistrados, a fim de que seja uma composição que reflita a diversidade de valores da sociedade em Israel e as expectativas do público em relação ao sistema judicial e que possa garantir transparência no processo de nomeação de juízes.
O segundo objetivo é regular, pela primeira vez, em uma Lei Básica, o controle judicial da legislação emanada pelo Knesset (Parlamento Israelense), definindo os limites de revisão judicial. É preciso entender que Israel não tem uma “Constituição” em documento unitário. São diversas “Leis Básicas” ou “Leis Fundamentais” para diversos assuntos: inclusive a Lei Básica para o Judiciário. Uma “Lei Básica” é como uma Constituição nos demais países que adotam as constituições unitárias. A proposta estabelece a supremacia das Leis Básicas, impedindo a revisão judicial das mesmas. Isso seria semelhante aos países do mundo ocidental que não exercem revisão judicial da própria norma constitucional.
O terceiro objetivo é clarificar os fundamentos de revisão da legislação administrativa israelense, para que a revisão judicial de questão administrativa seja fundada em padrões claros e objetivos, padrões aceitos em outros países, mas sem ingressar em critérios inseguros que avancem sobre conteúdo de decisão política. Algo que parece ser próximo às “political questions” no Direito Constitucional norte-americano.
O último ponto seria uma delimitação do uso de conceitos indeterminados e cláusulas abertas, como “irrazoabilidade”. Nas últimas décadas, a jurisprudência israelense desenvolveu uma intervenção excepcional em ações do governo, sempre que o Tribunal entendeu que a decisão do governo ou do parlamento não era razoável. Moshe Landau, ex-Presidente da Beit Hamishpat Haelyon (Suprema Corte de Israel), advertiu que, ao adotar aquela modalidade de fundamentação, a Corte se colocava no lugar do poder Executivo e interferia na sua discricionariedade legítima.
Diante desse panorama, surge a pergunta: é importante que nos lembremos do Chile?
Inúmeros juristas mundo afora questionam a reforma judicial em Israel e, especialmente, condenam a facilidade do Knesset (parlamento israelense) de editar uma reforma dessa magnitude. Ocorre que boa parte desses mesmos juristas não condenaram a tentativa de Nova Constituição para o Chile, repelida pelo voto popular no Referendo de 2022.
O que isso tem a ver com Israel? A proposta chilena pretendia, entre outras medidas, excluir a existência do Senado. Iria impor a unicameralidade ao Parlamento do Chile, país de tradição bicameral. Embora não confessada abertamente, a justificativa seria o fato de o Senado ser a parcela do Parlamento composta principalmente por conservadores, o que impediria ou retardaria a aprovação de legislações mais progressistas. O sistema unicameral, portanto, aceleraria as mudanças sociais e políticas desejadas.
Vejamos bem: Israel não tem Senado. O Knesset é unicameral. E, por causa disso, a proposta de reforma está avançando tão rapidamente em temas tão relevantes como a independência judicial e a responsabilidade (accountability) judicial. Essa última tão crucial quanto a independência.
Não se pode defender a agilidade de legislar de um lado, ao ponto de se buscar suprimir a bicameralidade onde é tradicional, e negar a mesma agilidade quando um país soberano e democrático já possui a unicameralidade como tradição.
A infrutífera proposta de uma nova Constituição chilena também trazia uma tentativa de mudança significativa. Criaria um Conselho de Justiça como órgão autônomo encarregado de nomear, governar, administrar, treinar e disciplinar o Sistema de Justiça naquele país. O sistema disciplinar sairia de cada Tribunal e passaria para o “Conselho”. Em tese, seria uma mudança capaz de afetar a independência judicial. Isso sem contar com inúmeras alterações no sistema de seleção de magistrados. Mais uma vez, nenhuma assinatura de juristas internacionais se pronunciou contra aquela tentativa.
O Legislativo, em todo o mundo democrático, detém um poder que pode ser chamado, para este artigo, de “substituição” ou “override” ou “overhaul”. O Poder Executivo também tem capacidade semelhante, embora diferente em extensão. É preciso atentar que cada país comporta sua peculiaridade.
Em linhas gerais, estamos falando do poder de “veto”: quando o parlamento aprova uma lei, o Poder Executivo pode “vetar” a lei e “substituir” a decisão do parlamento. Novamente: cada sistema jurídico prevê as possibilidades de veto e a extensão que o “veto” pode ter. Há países, por exemplo, que permitem vetos parciais, apenas para “trechos” de artigos ou alguma palavra, Em outros, como o Brasil, o veto deve alcançar o dispositivo por completo. Há, portanto, extensões diferentes para um poder assemelhado.
Dependendo de cada ordenamento jurídico, o Poder Legislativo também tem um outro poder de “substituição”, quando faz a “análise do veto” do Poder Executivo. Ele pode, inclusive, derrubar o veto. Isso seria a “revogação” ou “revisão” do veto do Executivo. Então, voltaria a vontade parlamentar original.
O fluxo e o contrafluxo de interesses na arena política são naturais. Quando o Judiciário assume o papel de intervir nas políticas públicas, anulando leis e interpretando-as de forma a alterar genuinamente o que o Parlamento decidiu, ele não pode ficar isento desse fluxo de interesses opostos. É preciso estabelecer, logicamente, a distinção entre a “inexistência de controle” e os outros extremos: um controle excessivo e um controle demagógico, capazes de aniquilar a independência judicial, sem agregar accountability nenhuma.
Hoje, porém, o gigantismo do Poder Judiciário não tem paralelo na história do mundo. Assim como os juristas construíram academicamente poderes judiciais que seriam impensáveis há 50 anos, a mesma academia, hoje, deve se preocupar em verificar o sistema proporcional de freios e contrapesos para poderes de tamanha importância.
No caso de Israel, na contramão da crítica acerba, é importante ler a opinião de Richard A. Epstein e Max Raskin. Epstein é Professor de Direito na New York University, membro sênior da Hoover Institution e Professor Sênior da University of Chicago. Raskin é Professor Adjunto de Direito na Universidade de Nova York e membro do Institute for Judicial Administration daquela instituição. Ambos publicaram poderoso artigo de opinião no Wall Street Journal de 29 de janeiro deste ano.
“Essa afirmação [nota: de economistas contrários à Reforma Judicial] é notável por dois motivos. Primeiro, muitos desses economistas apoiaram partidos políticos que se opunham às reformas de livre mercado de Netanyahu enquanto ele era ministro das Finanças de 2003 a 2005. Essas reformas permitiram que a economia do país crescesse por quase duas décadas. Em segundo lugar, a Suprema Corte não eleita de Israel – não o Knesset, seu parlamento eleito – é o ramo do governo que realmente detém o poder político sem controle. Em vez de colocar em risco o crescimento econômico, essas reformas judiciais propostas fornecem um controle necessário sobre o único tribunal do mundo ocidental com poder quase ilimitado para ditar a vida econômica e política”. (Tradução nossa)
Se verificado o índice de confiança na Suprema Corte de Israel, análises apontam que há um declínio contínuo na confiança do público. A segmentação por filiação política (outubro de 2022) revela que 80% da esquerda, 62% do centro e apenas 29% da direita confiam no Tribunal. Os números podem parecer altos, para uma pesquisa que informa a queda de confiança pública. Se olhada a média de vinte anos — 2003 a 2022 — de confiança pública, o índice chega a 59,5%. Ocorre que, se avaliado apenas o período de 2022, há uma queda abrupta para 42%.
Volto a destacar. É preciso compreender que Israel não tem uma Constituição unitária. O regime “constitucional” é formado por “Leis Básicas” ou “Leis Fundamentais” (preferível) para diversos setores — o Governo, o Judiciário etc. E parece que não desejam limites para a revisão judicial de qualquer legislação.
Todo discurso de mudança no Judiciário tem sido acompanhado, como prática mundial, por uma denúncia de ser algo antidemocrático per se, pintado como a vivificação de um novo fascismo e o mais comum dos aforismos: a violação da independência judicial. É óbvio que a independência judicial deve sobreviver, pelo bem da democracia, não apenas pelo bem da própria profissão jurídica ou de um órgão judicante. Para que isso ocorra, deve-se respeitar os sistemas de accountability. Qualquer forma de accountability deve ser proporcional ao tamanho do poder conferido a determinado agente ou órgão público.
Israel hoje, mais do que nunca, é um farol para o mundo. O Knesset poderá eliminar quaisquer exageros da proposta, ajustá-la ou aprová-la como está. E, durante a aplicação das regras promulgadas, serão buscadas futuras medidas de adequação. Os detentores da vontade popular oriunda do voto — expressão autêntica da democracia — poderão aquilatar medidas proporcionais para os alegados casos de extremo ativismo judicial.
Em última análise, o protagonismo da Beit HamishpatHaelyon (Suprema Corte de Israel) estará preservado, com proporcional mecanismo de freios e contrapesos.
Luiz Henrique Antunes Alochio é advogado, doutor em Direito da Cidade pela UERJ, mestre em Direito Tributário pela UCAM, pesquisador e professor visitante na Florida State University e procurador municipal de Vitória (ES).
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