Aparentemente, junto com a pandemia da COVID-19, os movimentos antirracistas ganharam força e temos presenciado, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, maior movimentação em busca de equilíbrio e reparação das desigualdades que dizimam e retiram, cruelmente, o sentimento de pertencimento e as origens culturais do povo africano.
Este movimento crescente liderado não de hoje, mas há muito tempo, por guerreiras como Neusa Santos e Virgínia Bicudo está ganhando novas vozes. Com o advento da internet, tornou-se mais difícil calar a dor e o sofrimento de uma discriminação obscura e, como a Psicanálise afirma, inconsciente, que vem perpassando gerações de dominados e dominadores.
O incômodo que trago é que estamos vendo, nos noticiários, o surgimento de uma nova “guerra”, que ouso comparar com a abolição da escravatura de outros tempos. Nos Estados Unidos, grupos antirracistas cresceram e, junto com eles, apareceram outros convictamente racistas, no momento em que, tanto Brasil quanto Estados Unidos entram em processo eleitoral.
Grada Kilomba, estudiosa do movimento de colonização africana e todas as suas consequências, em seu livro “Memórias da Plantação”, utiliza o discurso de Paul Gilroy para descrever que quem detém o poder utiliza cinco mecanismos inconscientes de alegação, para o manter e garantir a hegemonia branca, gerada para submeter o negro, mantendo-o em posição subalterna, considerando-o inferior e, consequentemente, oprimido. A negação em reconhecer que a realidade desagradável foi construída pelo próprio homem branco europeu, no momento de expansão de descobrimentos do “Novo Mundo”, é seguida pela cisão e projeção. Linguagem técnica que pode ser exemplificada, quando alguém afirma “eu não sou racista” ou “eles que vieram para a América”.
Quando a primeira fase defensiva inconsciente consegue ser trabalhada, surge o sentimento de culpa e o sujeito branco começa a viver em conflito. Para proteger-se da culpa, normalmente se recorre à intelectualização e à racionalização. Frases como: “Mas eu não fiz isso, quem fez foram pessoas no passado”, “eu não tenho nada a ver com isso” ou, ainda, “quando eu converso com alguém eu não olho a cor” confirmam que a história da pessoa está sendo ignorada.
Se o sujeito se permite continuar seu processo de transformação, é muito provável começar a sentir vergonha, o medo do ridículo ao qual se colocou e fechou os olhos durante tanto tempo, percebendo que não agiu como deveria, seguindo sua integridade e honestidade em reconhecer que todo um povo foi massacrado e ainda o é, e que não está fazendo nada para que tal situação se reverta. É neste momento que alguns poucos conseguem chegar ao reconhecimento, passando da fantasia criada para não ver a verdade, e a realidade. Se o sujeito alcança este estágio, ele pode passar à reparação, revendo seus privilégios – no caso dos brancos. Este último estágio é o mais difícil e, particularmente, não acredito ser possível sem uma intervenção social.
Quando me refiro aos estágios, não falo somente das pessoas brancas vindas da cultura europeia. O racismo, por estar enraizado nos processos inconscientes, também atinge a pessoa negra que, muitas vezes, acaba sendo influenciada a se comportar contra seu próprio povo, negando suas origens, seu cabelo, sua genética e buscando um ideal de beleza branco, ferindo-se ainda mais.
Assim, ir às ruas lutar, gritando que “vidas negras importam” é somente a superfície de um processo de transformação social muito mais profundo, que precisará ser trabalhado individual e coletivamente, e somente a busca por autoconhecimento – rompimento de nós de todas as esferas pessoais (não só questões racistas ou antirracistas) – pode iniciar um processo de construção de um mundo de igualdades. Isso implica aprender a lidar com o poder, nas múltiplas esferas governamentais, públicas e privadas, e do terceiro setor.
Não sei se a “guerra”, mesmo sem armas, seja suficiente para modificar décadas de ações destinadas ao predomínio e opressão de uns contra outros. Existe uma grande diferença entre “revolução” e “evolução”. Na revolução, há somente troca de papéis entre dominantes. É no processo evolutivo que ocorrem as verdadeiras transformações e mudanças. O comportamento e ações cotidianas podem falar muito mais do que os conflitos nas ruas.
Eu aprendi sobre o meu papel social como branca, passando pelos cinco estágios (citados aqui e abordados pela psicóloga portuguesa Grada Kilomba), com minha professora Eleonora Vaccarezza – que muito sabiamente soube me conduzir no processo de autodescoberta da minha branquitude e posição de privilégio, me acolhendo e me recebendo com muito amor, mesmo sendo ela membro de um povo extremamente sofrido. Do sofrimento e processo de construção da identidade, ela conseguiu encontrar forças, amor e contenção, para ensinar a história como aconteceu do seu lado. Considero que ela conseguiu fazer um bom trabalho, pois agora estou aqui, falando e escrevendo justamente sobre a importância de saber lidar com as desigualdades, de acordo com as nossas próprias medidas.
Vidas negras importam, sim, mas o processo de transformação precisa ser mais profundo. Você está pronto para mergulhar em si mesmo e refletir sobre isso?
Petruska Passos é psicóloga, psicanalista e colunista colaboradora do Hora News sobre Comportamento e Saúde.
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