STF deverá julgar processo que proíbe a demissão sem justa causa

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi fundada em 1919 pelos signatários do Tratado de Versalhes (o Brasil, inclusive, é um de seus fundadores) tendo como propósito assegurar internacionalmente condições de trabalho justas e equitativas. É a única agência das Nações Unidas que tem estrutura tripartite, na qual coexistem representantes de governos, das organizações de empregadores e de trabalhadores de 187 Estados-membros.   

Uma das funções fundamentais OIT é a elaboração, adoção, aplicação e promoção das Normas Internacionais do Trabalho que estabelecem princípios e direitos no trabalho, sendo uma delas as Convenções. Atualmente existem mais de 180 Convenções, tratados internacionais que definem padrões a serem observados e cumpridos por todos os países que os ratificam. A ratificação de uma Convenção da OIT por qualquer um de seus Estados-membros é um ato soberano e implica sua incorporação total ao sistema jurídico, tendo, portanto, um caráter vinculante.  

No Brasil, para que as Convenções Internacionais se tornem aplicáveis, é preciso a manifestação do Congresso Nacional e do presidente da República. Qualquer compromisso externo, portanto, somente pode ser assumido pelo Estado mediante manifestação da vontade nacional que, no Brasil, se dá através da aprovação do Congresso Nacional. É o que prevê a Constituição Federal no seu artigo 49, I.  

Quando o Tratado ou Convenção é incorporado ao Direito brasileiro, ele se situa, em regra, no plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais, ou seja, no mesmo patamar em que se encontram as leis ordinárias (segundo a Constituição Federal, apenas tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais).  

Vale citar também que o Estado Nacional pode denunciar a Convenção, o que, na prática, implica em dar um aviso que este não tem interesse em continuar observando aquela norma em seu ordenamento jurídico interno. Isso, claro, deve acontecer dentro de determinados prazos.   

Em 1982, a OIT aprovou a Convenção 158 que prevê diversas proposições relativas ao término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, como a que consta no seu artigo 4º, segundo o qual “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”.  

Vale citar que a Convenção 158 chegou a ser ratificada à época pelo Estado brasileiro, tanto que promulgada através do Decreto 1.855, de 10 de abril de 1996. A mesma, no entanto, teve vida curta no ordenamento nacional, sendo denunciada pelo Decreto 2.100, de 20 de dezembro de 1996. A Convenção, aliás, nunca chegou a ser um “sucesso” internacional, afinal, apenas 37 dos 187 países-membros a ratificaram.  

A medida (denúncia), no entanto, foi contestada judicialmente em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1625) movida junto ao STF em 1997 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e pela CUT. O fundamento foi de que o decreto deveria ter sido ratificado pelo parlamento.   

Em resumo, portanto, o que está em análise agora no STF é apenas e tão-somente o aspecto formal, qual seja, o decreto de denúncia da Convenção 158 deveria ou não ter sido ratificado pelo parlamento? Uma questão absolutamente técnica!   

É fato que após uma longa tramitação de 25 anos e intermináveis pedidos de vista, sendo o último do ministro Gilmar Mendes em outubro de 2022, com votos inclusive de ministros aposentados e já falecidos, o julgamento, ao que parece, se encaminha para o fim, já que, pelo novo regimento interno aprovado pelo STF no final do ano passado, o retorno de vista deverá se dar de forma inadiável em não mais do que 90 dias após o seu pedido. Aliás, a contagem dos votos aponta que a ADI deverá ser julgada procedente.  

Há aqui, no entanto, outras questões de fundo que merecem análise. Na já jurássica ADI 1625 não votaram Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, integrantes que, hodiernamente, substituem os que já votaram e que já se aposentaram ou então faleceram.  

Ocorre que, paralelamente à ADI 1625, tramita no STF, também com o mesmo objeto, outra Ação Direta, a ADC 39, na qual entidades sindicais patronais pretendem a declaração de constitucionalidade do decreto de denúncia presidencial. Esta ação é mais recente, de 2015, e, por conta disso, será analisada por uma composição de plenário diferente da ADI de 1997, ou seja, nela votarão outros ministros e ministras e o resultado pode ser outro completamente diferente para o mesmo tema. Aliás, o próprio ministro Dias Toffoli, que já votou nesta última, se posicionou contrário à declaração de constitucionalidade, por exemplo. O ministro Gilmar Mendes pediu vista em ambas as ações e, ao que se sabe, conversas acontecem para evitar o imbróglio.  

O que se vê, portanto, é que a questão ainda é complexa.   

Mas, ultrapassada a questão processual, a eventual inconstitucionalidade do decreto que denunciou a Convenção 158 significaria, conforme vem sendo divulgado (até de forma irresponsável), que “o STF deve aprovar medida que proíbe demissão sem justa causa” ou “pode validar norma que proíbe a demissão sem justa causa”, ou, pior, “equivale dizer que não se poderá demitir ninguém sem justa causa”?   

A resposta é, por certo, indubitavelmente negativa a todas essas afirmativas. Isso porque, independentemente da questão técnica da constitucionalidade da sua denúncia, a Convenção 158 da OIT, em si, não prevê tal fato e o julgamento não levaria automaticamente a esta conclusão. Aliás, a discussão nem mesmo é nova.   

Com efeito, consultando a jurisprudência do TST, por exemplo, o entendimento é absolutamente pacífico no sentido de que “a Constituição Federal estabelece que a lei complementar seria a via para se estabelecer a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, e que a própria Convenção 158 exige a edição de lei para que produza efeitos. Assim, como, nunca, nenhuma norma regulamentadora tenha sido editada, nenhum ‘efeito’ foi possível” (Processo: AIRR-1430-79.2014.5.17.0007). 

No julgado de 2017, o ministro Bresciani relatou: “A inobservância da forma exigível conduzirá à ineficácia qualquer preceito pertinente à matéria reservada. Se a proteção contra o despedimento arbitrário ou sem justa causa é matéria limitada à Lei Complementar, somente a Lei Complementar gerará obrigações legítimas”. E não bastasse, neste mesmo julgamento o ministro Godinho lembrou que o próprio STF já teria entrado no mérito na decisão liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.480[1]. Nessa decisão da Suprema Corte, relatada pelo ministro Celso de Mello, consta o seguinte:  

“A Convenção nº 158/OIT, além de depender de necessária e ulterior intermediação legislativa para efeito de sua integral aplicabilidade no plano doméstico, configurando, sob tal aspecto, mera proposta de legislação dirigida ao legislador interno, não consagrou, como única consequência derivada da ruptura abusiva ou arbitrária do contrato de trabalho, o dever de os Estados-Partes, como o Brasil, instituírem, em sua legislação nacional, apenas a garantia da reintegração no emprego. Pelo contrário, a Convenção nº 158/OIT expressamente permite a cada Estado-Parte (Artigo 10), que, em função de seu próprio ordenamento positivo interno, opte pela solução normativa que se revelar mais consentânea e compatível com a legislação e a prática nacionais, adotando, em consequência, sempre com estrita observância do estatuto fundamental de cada País (a Constituição brasileira, no caso), a fórmula da reintegração no emprego e/ou da indenização compensatória. Análise de cada um dos Artigos impugnados da Convenção 158/OIT (Artigos 4º a 10)”.

A questão material, ao que parece, ainda que encontre alguma divergência, já se resolveria nos argumentos acima, mas é de se ressaltar ainda que a Convenção 158 da OIT em nenhum momento proíbe a dispensa do trabalhador sem justa causa ou assegura estabilidade. Explica-se: a “justificativa” prevista no artigo 4º da Convenção não afasta, tampouco se confunde com a causa justa prevista no artigo 482 da CLT (o que implicaria conflito de normas, aliás). Tais normas foram criadas para fins diversos, diga-se. Se assim fosse, haveria inconstitucionalidade na Convenção por impossibilidade do exercício da livre iniciativa (artigo 170 da CF).   

E não só. Essa compreensão seria também inconstitucional por conflitar com o próprio inciso I do artigo 7º da CRFB, o qual prevê, expressamente, que a proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa em uma relação de emprego deve se dar nos termos de lei complementar, sendo que está preverá uma indenização. Essa lei jamais existiu, no entanto.  

Assim, alardear que o STF deve aprovar ou validar “medida que proíbe” demissão sem justa causa ou mesmo que “equivaleria dizer” que não se poderá demitir ninguém sem justa causa, como se estivéssemos diante de uma questão de efeito automático, para além de não ser verdadeiro sob o prisma jurídico, ainda soa como terrorismo oportunista que pode gerar efeitos nefastos no próprio mercado de trabalho, por instigar demissões por empresários receosos, estimulando (ainda mais) a contratação informal. 


André Gonçalves Zipperer é advogado, sócio do escritório Zipperer, Minardi e Pavelski, professor universitário, pesquisador da USP/GETRAB, mestre e doutor em Direito, e membro do conselho de relações do trabalho da Associação Comercial do Paraná.





Fonte: Jota Info
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Comente

Participe e interaja conosco!

Arquivos

/* ]]> */