A semana do Dia Internacional da Mulher, mesmo em meio a pandemia, é marcada pela aprovação de várias pautas que, pelo menos de forma reflexa, afetam e auxiliam o público feminino nesse país. Nesse sentido, no dia seguinte a esse emblemático dia, 09 de março, foi aprovado por unanimidade no Senado o Projeto de Lei 1.369/2019 que criou o crime de stalking. Esse novo tipo penal, adicionado ao Código Penal pátrio, além de trazer consequências jurídicas evidentes deve trazer um novo debate sobre aspectos sociológicos do que está a se punir.
Contudo, antes de entrarmos nos aspectos psicológicos é importante desmistificar o que é stalking. Bom, pela nova lei brasileira (Lei 14.132/2021) que criou o art. 147-A do Código Penal, esse ato de perseguição pode se dar de 3 formas: a) Perseguir de forma reiterada ameaçando a integridade física ou psicológica da pessoa (perseguir a pessoa na rua, em seu ambiente de trabalho ou qualquer outro local de trânsito); b) Perseguir de forma reiterada uma pessoa de forma a diminuir a sua liberdade de locomoção (por exemplo, a pessoa pode perseguir a outra de tal forma que a vítima evite ir à casa de parentes ou mesmo sair de casa por conta da presença do agente) ou c) Perseguir de forma reiterada invadindo e perturbando a sua esfera de liberdade e privacidade. (por exemplo o agente pode reiteradamente enviar cartas, telegramas dentre outros meios de forma incisiva).
Para esse crime a lei estipula uma pena de reclusão de 06 meses a 02 anos que pode ser aumentada em 50% em caso de o crime ser contra criança e adolescente, idoso ou mulher por razões do sexo feminino. A redação desse último ponto se assemelha bastante ao crime de homicídio qualificado pelo feminicídio previsto no Art. 121, §2°, VI do Código Penal, ou seja, se intercala com a noção de violência doméstica contra a mulher. Nesse caso, o agente se vale de outros meios para tentar intimidar a vítima, a título de exemplo, pode se citar o caso do agente que acaba de se separar da mulher e, querendo a qualquer custo reatar o enlace amoroso, começa a perseguir a vítima.
É de bom tom que se fale que esse delito já estava dentro do sistema penal brasileiro através do art. 65 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n° 3.688/1941) só que com uma pena muito pequena de até 02 meses e que poderia ser substituída por multa.
Ao passar do ponto de vista analítico da norma é de se perceber que esse crime dá um passo a frente em relação ao crime de ameaça pois, como próprio nome já sugere, esse último exige uma ameaça real e concreta contra a pessoa, seja por palavras ou gestos e muitas vezes é essa ameaça que impede a mulher de sair de um relacionamento amoroso abusivo com agressões de todas as formas, já o de stalking não, necessita apenas da demonstração de uma perseguição desarrazoada do agente com vistas a intimidar a vítima.
Além disso, a presença do perseguidor rotineiramente nas redondezas da casa da mulher-vítima logo após o término de um relacionamento por vezes é uma maneira do agressor ameaçar a vítima e isso faz com que essa mulher se sinta coagida, forçada, obrigada a reatar o relacionamento por medo de ser agredida ou vir a ser mais um corpo estendido sob a nefasta estatística de feminicídios do Brasil.
Nesse mesmo sentido, é bom que se tenha em mente que a criação dessa lei também abarca a perseguição online que, tal qual a física, também gera consequências especialmente gravosas. O deslumbre doentil de um homem para com uma mulher é algo que, em última instância, pode levar a tragédias e muitas vezes, em nossa sociedade, essa perseguição é vista como algo romantizado de alguém que está tentando conquistar uma mulher. Ora, deve-se traçar (e possivelmente caberá ao Poder Judiciário delimitar) o que é um flerte do que é efetivamente uma perseguição doentia.
De outra banda, o crime de perseguição não somente abarca a violência doméstica, já há por exemplo, o debate acerca do paparazzi, profissionais da imprensa que seguem artistas e pessoas famosas para conseguir cliques para revistas ou portais especializados. Nesse ponto, encontramos a dicotomia da liberdade de imprensa em face da liberdade individual e assim também caberá ao Poder Judiciário delimitar o que é um livre exercício jornalístico de uma perseguição doentia, nesse último caso também poderá ser abarcada pelo recém-criado crime.
Ademais, cumpre nesse relato buscar entender o ponto de vista sociológico desse ponto. Isso porque, especialmente na última década, temos cada vez mais tendo que nos deparar com a necessidade de criarmos e debatermos leis acerca dos meios digitais e da violência contra a mulher. É evidente que o stalking, tal qual aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente, engloba outras modalidades, mas essas são as mais palpitantes.
Primeiramente, a violência contra a mulher com a respectiva criação de uma rede de proteção em face da violência contra a mulher – especialmente com a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) – é e continuará sendo algo muito debatido. Isso porque, o número de feminicídios demonstram que, em que pese ter havido melhoras, estamos distantes de uma rede eficiente de proteção a vítima e punição do criminoso. A resposta do meio social para esse fato geralmente a criação de novos crimes que nem sempre se refletem na prática. Com isso, não estou querendo dizer que os crimes contra a mulher não devem ser punidos, pelo contrário, mas levanta a dúvida de se o entulhamento de crimes – com toda a boa vontade que eles estão carregados – está sendo o meio mais eficiente de combater de forma cirúrgica e sem danos colaterais graves a violência contra a mulher.
De outro ponto é evidente que o Brasil caminha para enfrentar com rigidez os crimes cometidos no meio cibernético. A internet não pode ser mais terra de ninguém. Não é porque deixo minhas informações públicas em uma rede sociais, por vezes até utilizada como meio de trabalho, que dei o acesso para qualquer pessoa me perseguir reiteradamente. A própria criação da Delegacia de crimes cibernéticos vem nessa esteira. Isso porque o empoderamento e aparente sigilo de identidade das redes sociais não pode ficar à margem de punições por excessos. Mas, nesse ponto também vem o questionamento, a detecção de um crime e a sua punição, por raciocínio lógico, é sempre posterior ao fato, mas o que estamos fazendo a título de debate amadurecido seja no Congresso Nacional ou mesmo como sociedade civil organizada para prevenir a atuação ilícita na internet? Hoje com a criação de um simples email posso criar quantas contas de redes sociais desejar e continuar perseguindo de forma reiterada a pessoa até ser descoberto e punido talvez até por esse novo crime.
Por fim, cumpre aqui ressoar uma afirmação do gigantesco Professor Aury Lopes Jr., em sua disciplina Prova no Processo Penal no Curso de Pós-Graduação Direito Penal e Criminologia da PUC-RS, a criminalização de uma conduta é sempre o fracasso de uma sociedade em combater de outras formas. Avançamos com a criação do crime, mas o surgimento de um novo delito nunca é um resultado por si só se não vier acompanhando de ações de prevenção e conscientização. Reflitamos e agimos.
Arthur Irwin é advogado, pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS, e articulista colaborador do Hora News.
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