A manobra para tentar introduzir o semipresidencialismo no Brasil não é nova e faz parte do plano do golpe continuado, promovido pela classe dominante contra o povo brasileiro, uma vez que, pelo voto popular, desde 2002 ela perdeu quase todas as eleições presidenciais com candidatos do Partido dos Trabalhadores à frente. Foi assim em 2002, 2006, 2010, 2014 e 2022; e só não se repetiu em 2018 porque, em outro ato golpista, encarceraram ilegalmente o presidente Lula.
A primeira vez que tive conhecimento dessa proposta de semipresidencialismo foi em dezembro de 2015, exatamente quando começou a se materializar a ofensiva golpista que levou ao indevido impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
Em janeiro de 2016 (ano da efetivação do golpe contra Dilma), um ex-presidente do Conselho Federal da OAB apresentou um ensaio sobre o tema, com o título “Uma proposta para o Brasil: o novo presidencialismo”, sob o argumento de colaborar para o enfrentamento da crise política em curso no país naquele momento.
O estudo era baseado nos modelos francês e português e seu objetivo era limitar os atuais poderes da instituição Presidência da República, que passaria a exercer o controle do Poder Executivo em conjunto com um “Conselho de Ministros”, cujo presidente seria nomeado pelo Presidente da República e exonerado do cargo quando o Congresso Nacional lhe retirasse a confiança. De acordo com a proposição, esse Conselho de Ministros responderia “coletivamente perante o Congresso Nacional pela política do Governo e pela Administração Pública Federal”.
Ironicamente, a proposta contida no ensaio de 2015 segue diretrizes idênticas às apresentadas na Proposta de Emenda à Constituição 02/2025, recentemente encaminhada pelo Deputado Luiz Carlos Hauly, do Paraná.
Recordemos que em 2020 o então presidente da Câmara, Arthur Lira, formou uma comissão de deputados e juristas (entres estes o golpista Michel Temer) para estudar a implantação do semipresidencialismo no Brasil e essa proposta tem contado com o apoio declarado de Gilmar Mendes e outros ministros do STF.
Nesta parte, considero importante ressaltar que, desde 2015, iniciou-se o processo de enfraquecimento das atribuições do Presidente da República como chefe de governo. O melhor exemplo disso foi a aprovação do orçamento impositivo, por meio da Emenda Constitucional 86/2015, pela qual uma parcela expressiva da gestão do orçamento do governo passou a ser transferida para o parlamento, o que, a meu juízo, é inconstitucional, por violação da cláusula pétrea da separação de poderes por reduzir as atribuições do Poder Executivo em favor do Legislativo.
Contudo, no enfrentamento a essa questão, o STF tem se limitado a analisar a falta de transparência, a imoralidade e as fraudes cometidas mediante o encaminhamento das emendas parlamentares, sem se debruçar sobre o problema central das emendas impositivas, que esvaziam as atribuições do Executivo pelo Legislativo, com a usurpação de suas prerrogativas constitucionais originárias.
O orçamento impositivo em curso é um meio de introduzir de modo tácito no Brasil o semipresidencialismo, sistema de governo muito parecido com o parlamentarismo, em que o presidente seria o chefe de Estado, responsável pelas relações externas, e chefe das Forças Armadas, e o exercício do governo estaria a cargo dos parlamentares, por meio da figura de um conselho de ministros ou de um primeiro-ministro.
Pode-se considerar que evitaram o termo parlamentarismo porque o povo brasileiro já se opôs a ele em pelo menos duas ocasiões; daí a tentativa de ressignificar o que já existe, inventando um novo termo para confundir os distraídos filhos da nossa pátria-mãe, subtraída desde sempre em nebulosas transações, como diz nosso caro poeta.
Para os defensores da ideia, a alteração seria uma forma de assegurar a estabilidade política, diante da crise iniciada com o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, que se agravou durante os frágeis governos de Michel Temer e de Bolsonaro.
Ocorre que, além da pretensa proposta de emenda constitucional ser questionável sob o aspecto jurídico, por ser proibida a alteração da Constituição no que atente contra o princípio da separação de poderes (artigo 60, § 4º, III, da Constituição Federal), a inegável tentativa de reduzir as atribuições da Presidência da República representa grave violação à independência de outro poder, perpetrada por meio do poder constituinte derivado.
O parlamentarismo foi debatido durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, porém, ao final, prevaleceu o sistema de governo centralizado no Presidente da República, chefe do Poder Executivo, com um conjunto de atribuições no âmbito interno e internacional, definidas no artigo 84 da Constituição.
Ademais, um regime de governo nos moldes do pretendido “semipresidencialismo” demanda a existência de partidos racionalmente organizados e com representação de base, o que de maneira geral, não existe no Brasil, com pouquíssimas exceções.
Também não existe fidelidade partidária, necessária para se consolidar o regime nos moldes propostos, uma vez que a todo momento são criados partidos sem representatividade, que apenas favorecem o troca-troca de legendas e promovem o desrespeito pelo voto atribuído ao partido que serviu de estrutura para a eleição do parlamentar. A infidelidade partidária é uma das grandes causas da instabilidade política no país, e não o sistema de governo em si, adotado há mais de um século e amplamente referendado pela população brasileira em diversas oportunidades.
Na atual conjuntura, diante de um patrimonialismo cada vez mais exacerbado, em que o poder do capital e os acordos entre as oligarquias tradicionais e grupos neopentecostais são as forças que efetivamente elegem os parlamentares, como acreditar, com sinceridade, na existência de “partidos dispostos a assumir a direção dos negócios públicos”, que representem de fato os interesses de todos os cidadãos, num sistema de governo em que esse parlamento seria o ator preponderante?
Recordemos que o sistema de governo presidencialista foi ratificado pela vontade popular em plebiscito realizado em 07 de setembro de 1993, por força do artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que rejeitou o parlamentarismo como sistema de governo no Brasil.
Além de ser protegido por cláusula pétrea, por envolver diretamente a separação de poderes (artigo 60, § 4 º, III, da Constituição Federal), o presidencialismo foi reafirmado no curso de vigência da Constituição, conforme determinado pelo constituinte originário, e assim só pode ser modificado por uma Assembleia Nacional Constituinte. Por tudo isso, a implementação do semipresidencialismo é inconstitucional por violação da cláusula pétrea da limitação ao princípio da separação de poderes e apresenta-se distante da realidade do pensar e do agir político brasileiro.
Na verdade, trata-se de mais uma ação do golpe continuado contra as forças do campo democrático, popular e progressista no Brasil, e visa tão somente entregar o controle total das instituições aos muito ricos e financistas, que poderão então fazer o que bem quiserem com o Brasil, como privatizar as empresas estatais que ainda permanecem sob controle público, entregar ao capital internacional o que resta das riquezas do país e aprofundar ainda mais a exploração, vulnerabilização e precarização em que os trabalhadores foram lançados com o desmonte das normas de proteção do trabalho desde a reforma trabalhista de 2017.
Jorge Rubem Folena é advogado, jurista e doutor em Ciência Política.
*Este é um artigo pessoal de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Hora News.
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