A manifestação exterior de uma coisa nem sempre retrata sua verdadeira essência. Na seara jurídica, por exemplo, pouco importa se uma lei venha a classificar uma determinada verba como remuneratória, com todos os consectários possíveis, se, ontologicamente, o adjutório reveste-se de todas as características de vantagem pecuniária de natureza indenizatória.
Da mesma forma, um aumento salarial travestido de abono ou adicional, mais cedo ou mais tarde será tido como reajuste vencimental, assim como o contrato de prestação de serviço feito para mascarar uma relação de trabalho será oportunamente desconsiderado por um julgador honesto e atilado.
Em suas aulas de Direito Constitucional, Carlos Britto utilizava a seguinte imagem para ilustrar casos que tais: se você pintar um cavalo branco com listras pretas, nem por isso ele deixará de ser um cavalo para se transformar em zebra, apesar da aparência. E arrematava: “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo!”.
Desde que se lhe examinou os dentes e a pelagem, a Procuradoria Geral do Estado cismou que a RETAE não passava de um cavalo branco que o Governo e a Assembleia Legislativa ardilosamente haviam pintado com listras pretas a fim de resolver o problema dos plantões – problema do Estado, diga-se de passagem, e não dos policiais que para eles se voluntariam, meros joguetes que são nas mãos dos fatores reais do poder, como diria Lassalle.
Alheio à discussão sobre a natureza do quadrúpede, o servidor policial civil foi quem bem sentiu as esporas no vazio e a chibata a vergastar-lhe o lombo nesta última quarta-feira, 28, quando a Secretaria de Estado da Administração publicou os contracheques de agosto, neles constando o desconto do imposto de renda sobre a RETAE referente aos plantões laborados em junho e julho.
Um dia após o anúncio trágico, chegam notícias da existência de um novo projeto em trâmite no âmbito administrativo – uma espécie de RETAE 2.0 que em breve seguirá para a Assembleia Legislativa. Não duvido das boas intenções de quem o elaborou, embora muitos delegados nos ressintamos do fato de não termos tido a oportunidade de conhecê-lo e analisá-lo previamente em assembleia geral convocada com essa finalidade, ou em reunião realizada pela Administração da Polícia Civil.
Envolto em absoluto mistério e totalmente desconhecido dos servidores policiais civis, é impossível dizer se o novo projeto atende efetivamente aos interesses dos servidores ou não passa de um lenitivo para quem sentiu o golpe aplicado pelo governo.
Ao menos tivesse havido enfrentamento, resistência, defesa intransigente do direito outorgado em lei pelos entes representativos das diversas categorias integrantes da Polícia Civil, não estaríamos agora tão acabrunhados e descrentes.
Mas o Governo, como dito, arbitrariamente garfou 1/3 da renda extraordinária dos policiais civis. Diante disso, quem nos garante que o novo projeto, a despeito da boa-fé de quem o elaborou e defende, não terá a mesma sorte das leis anteriores?
Com efeito, em se tratando de benefícios concedidos a policiais, há fartos registros de que, no apagar das luzes, príncipes viram sapos, lebres transformam-se em gatos e cavalos transmudam-se em zebras, ou vice-versa. Assim, antes de qualquer iniciativa, por mais nobre e louvável que pareça, convém analisar se o cisne de alvacentas plumas de hoje não poderá ser o esquipático ornitorrinco de amanhã.
Paulo Márcio Ramos Cruz é Delegado da Polícia Civil de Sergipe, ex-presidente da Adepol/SE e Segundo Vice-Presidente Jurídico da Adepol do Brasil. Atualmente está lotado na Central de Flagrantes de Aracaju.
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