Estreou na Netflix “The Family: Democracia Ameaçada”, uma série documental que expõe e denúncia a The Fellowship Foundation, uma organização cristã fundamentalista também conhecida como “A Família”, que opera nos bastidores do poder, influenciando políticos americanos entre eles, presidentes, ditadores e congressistas nos Estados Unidos e no resto do globo. Inspirado em dois livros do jornalista Jeff Sharlet, a minissérie mostra como um grupo com grandes figuras da política norte-americana se unem supostamente para colocar os ensinamentos de Jesus no meio político e expandi-los mundo afora. Seu viés ideológico seria acima do político, enalteceria valores cristãos e tentaria influenciar tantos países quanto possível. Sabemos que os ensinamentos de Jesus pregam o perdão e o amor, poderia haver prejuízo se alguém se dispusesse a governar de acordo eles? Mas quem interpreta estes ensinamentos?
Para o pastor americano Ralph Drollinger, fundador do ministério evangélico Capitol Ministries, a bíblia justifica as ações mais radicais do governo Trump, por exemplo. Ele garante que ir à guerra é uma ação abençoada pela própria palavra de Deus e que a tendência em direção ao pacifismo e não intervencionismo é antibíblica. Assim, a ameaça de guerra com a Síria, o Irã e a Coreia do Norte, movimentos iniciados pelo presidente Trump, são justificáveis. Como a The Fellowship Foundation, o objetivo da igreja fundada por Drollinger é “converter” políticos e servidores públicos a uma “visão cristã evangélica da política”. Uma visão que se casa perfeitamente com os valores da ultradireita americana.
De acordo com a agência de jornalismo investigativo Pública, a Igreja Capitol Ministries está chegando ao Brasil. Com lançamento oficial programado para o mês de agosto, no Senado Federal, a igreja que já abriu ministérios em seis países latino americanos desde 2017, terá o pastor da Igreja Batista Vida Nova, Raul José Ferreira Jr., como responsável por conduzir estudos bíblicos no Senado e na Câmara. O pastor afirma que “se Deus permitir” vai conduzir também estudos bíblicos na Casa Civil junto ao presidente Jair Bolsonaro e seus ministros. No Brasil, a Capitol Ministries pretende conduzir nos gabinetes reuniões bíblicas individuais com parlamentares, especialmente os não convertidos, além de reuniões coletivas semanais. “Nosso objetivo é reconstruir a nação a partir de valores cristãos que são forjados através do estudo da palavra”, define o pastor.
Apesar da Constituição de 1988 no artigo 19 vedar explicitamente que a União, estados e municípios estabeleçam cultos religiosos ou igrejas, criem incentivos ou privilégios e mantenham relações de dependência com líderes ou instituições religiosas, temos visto assuntos religiosos, que deveriam pertencer à esfera privada do indivíduo, influenciando a esfera pública do Estado. Os governos têm promovido a religião como um projeto oficial e o que é mais grave: promovem uma visão particular da religião. E isso não começou agora.
Em 2010 o Brasil e o Vaticano firmaram acordo, costurado pelo então presidente Lula com o papa Bento XVI e promulgado pelo Decreto 7.107/2010, que estabelecia na rede pública de ensino do país o modelo de ensino confessional, ou seja, deveriam ser ensinados os dogmas de determinada religião. Com a maior população católica do mundo, a Igreja Católica no Brasil foi privilegiada pelo acordo frente a outros credos. A Procuradoria-Geral da República (PGR) prontamente questionou este modelo de ensino religioso. Sua visão era de que a Constituição não estabelece modelo e condena o proselitismo religioso que é justamente a ação de tentar converter uma ou várias pessoas em prol de determinada religião. Para a PGR, o ensino religioso nas escolas públicas não poderia ser vinculado ou ter o predomínio de uma religião específica. Mas em 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ação de inconstitucionalidade da PGR. Por maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras poderia ter natureza confessional, ou seja, estar vinculado às diversas religiões. Isto mostra o alcance e o avanço do campo religioso em direção a política e a educação.
Ciente de que evangélicos representam um dos principais grupos de apoio ao seu governo, em maio deste ano o presidente da República publicou um vídeo em sua página no Facebook, em que o pastor francês Steve Kunda o apontava como um “escolhido de Deus”. Segundo ele, “na história da bíblia houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo é o imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu servo Ciro’. E o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil”, disse Steve Kunda.
De fato, o atual governo tem se associado com o segmento evangélico desde o seu início. Uma pesquisa do Datafolha mostrou que entre os que se dizem evangélicos, 41% aprovam o governo Bolsonaro contra 30% dos católicos e 25% dos sem religião. Recentemente, o porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, afirmou que o presidente Jair Bolsonaro “está aberto às demandas desse grupo tão especial para a sua eleição”. E o governo já tem atuado em seu favor. As igrejas, que já tinham imunidade tributária sobre todo o valor arrecadado, não pagando impostos sobre aluguel de imóveis, bens em nome da entidade e serviços prestados, por exemplo, agora tiveram as normas para a prestação de contas flexibilizadas e estão dispensadas de apresentar Escrituração Contábil Digital à Receita, como números do balanço, por exemplo, até R$ 4,8 milhões.
Além disso, um levantamento foi feito pela Jovem Pan com base nos informativos da agenda oficial do presidente no site do Palácio do Planalto, mostrou que em oito meses à frente da Presidência da República, Jair Bolsonaro dedicou praticamente toda a sua agenda de encontros com religiosos a grupos evangélicos. De 33 encontros com religiosos, Bolsonaro dedicou 30 a evangélicos, dois a Igreja Católica, à qual diz pertencer, e compareceu a um jantar organizado por muçulmanos.
Para Amanda Mendonça, professora da UFRJ e coordenadora do Observatório da Laicidade na Educação (OLE), “o Brasil é um Estado laico no discurso, mas não na prática”. Em entrevista ao site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, ela chama a atenção para um detalhe que diz muito sobre o nosso país: o parágrafo primeiro do artigo 210 da Constituição cita a disciplina religião como oferta obrigatória pelo Estado ainda que facultativa aos alunos do ensino fundamental. “Nossa Constituição não fala em matemática, biologia, física, química, entre outras, mas o ensino religioso está lá”, afirma.
A depender de quem está no poder uma ou outra religião tende a ser imposta e com determinados credos religiosos como os cristãos sendo beneficiados por serem maioria, alunos de matrizes africanas, por exemplo, são discriminados. Prova disso, é que em 2016 um relatório da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa alertou que, entre 2011 e 2015, mais de 70% dos crimes de intolerância religiosa foram praticados contra religiões de matriz africana sendo o professor um dos que mais comete discriminação. Além disso, apesar de o ensino de história e cultura afro-brasileira ter se tornado obrigatório a partir de 2003 nas escolas de ensinos fundamental e médio do país, até 2017 praticamente não havia informação sobre sua capilaridade no sistema brasileiro.
O avanço de setores fundamentalistas em torno de uma agenda e uma retórica conservadora, a defesa de supostos valores cristãos e dos bons costumes em nome de um conceito de família que não reflete mais a realidade da sociedade, a associação dos governos com missões religiosas que têm conquistado espaço na esfera política brasileira, como a Capitol Ministries, presidentes eleitos sendo abençoados por orações de seus aliados em cadeia nacional e estudos religiosos sendo ministrados a políticos em prédio governamentais são demonstrações inequívocas da violação dos princípios de separação de Estado e Igreja. Nossos governantes estão longe de atuar para formar cidadãos e pessoas autônomas capazes de realizarem suas próprias escolhas e tomarem decisões por si próprias em todos os campos da vida, inclusive o religioso. Em sua relação promíscua, Religião e Estado conspiram em nome de Deus para manipular e explorar as pessoas e ainda são bem sucedidos porque elas continuam sendo treinadas a acreditar, não questionar.
Murilo Lima é analista comportamental, coach e especialista em gestão de empresas e empreendedorismo. Possui também formações em desenvolvimento de líderes, desenvolvimento estratégico e gestão da criatividade e inovação. Atualmente é gerente comercial da Jovem Pan Aracaju e mentor voluntário da ONG Projeto Gauss. Desde 2012, conduz processos de desenvolvimento pessoal e profissional para empresários, líderes e jovens promissores, visando a expansão de competências, incremento de resultados e aprimoramento do ser.
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