A Receita Federal (RF) aplicou 27 multas diretas aos CPFs de 26 servidores públicos, funcionários concursados dos Correios e com funções de gestões, que foram afastados no Centro de Tratamento Internacional de Cargas dos Correios no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. A área é um recinto alfandegário internacional.
As multas começaram a chegar aos servidores há alguns dias, mas somente terça-feira desta semana, dia 17, o caso “explodiu” entre os próprios funcionários da Casa, causando burburinho.
Os valores das multas variam entre R$ 5 mil a R$ 130 mil; esta última aplicada ao Gerente de Transporte. Cada uma delas tem alguma irregularidade. Mas, basicamente, todas estão relacionadas ao descumprimento do regulamento aduaneiro.
Em termos práticos, o que seria isso? Por exemplo, autorizar a entrada de estranhos ao recinto alfandegário sem comunicar a Receita Federal configura infração e é passível de multa. Via de regra, por estarem diretamente relacionadas aos CPFs, todas as 27 multas aplicadas pela Receita não podem ser pagas pelos Correios.
A aplicação destas multas diretas, porém, é apenas um dos desdobramentos de um caso de iniciou-se em junho, rendeu uma fiscalização interna da Receita ao Terminal dos Correios de Guarulhos, em São Paulo e, em meados de julho, após uma ‘batida de rotina da RF’, 26 funcionários foram afastados e hoje encontram-se realocados em outros postos de trabalho.
Internamente, nos Correios, o caso é narrado/tratado em um processo administrativo de número SEI: 53177048916/2024-71, de conteúdo sigiloso. Portanto, servidores que, porventura entrarem no sistema dos Correios para tentar acessar o processo, acabam deixando suas matrículas visíveis no sistema interno da Casa, o que pode ocasionar punições severas, caso existam ali segredos da empresa. Ninguém sabe ao certo que consta neste processo que se referente ao caso acima citado, mas funcionários dizem ser um processo robusto, recheado de áudios, depoimentos, fotografias, etc. Vale ressaltar que, o conteúdo do processo é sigiloso, não o número dele. Em termos práticos, para que o leitor compreenda, em equivalência, o número de um processo seria como uma Carteira de Identidade, um CPF; o conteúdo sigiloso dele pode ser comparados aos dados bancários ou dados telefônicos de um cidadão.
Por que Guarulhos é tão importante?
Mas, por que Guarulhos é assim tão importante e este caso, em questão, pode não ser somente uma ‘batida de rotina’. Porque todas as cargas internacionais que veem de fora do país – desde uma ‘brusinha’ comprada na Shein, até eletrônicos, como um Iphone 15 Pro Max Apple ou bolsas de grife, por exemplo, – chegam primeiramente em Guarulhos, que recebe e separa as malas postais e só depois as encomendas seguem para um Centro de Tratamento Internacional de Cargas dos Correios, que pode ser em São Paulo capital ou Valinhos, Curitiba, Rio de Janeiro. Em um desses Centros de Tratamentos Internacionais, a carga passa pelo processo de nacionalização e, após o pagamento dos impostos, ela segue para a distribuição interna no país. Então, uma pessoa, que mora no interior de Minas Gerais e comprou uma simples blusinha na Shein, por exemplo, antes de essa blusinha chegar ao seu destino final, que é o interior de Minas Gerais, essa blusinha chegou primeiramente em Guarulhos e passou por todo esse complexo de procedimentos.
O leitor então poderia se perguntar: mas, por que o Aeroporto Internacional de Guarulhos? Porque os outros aeroportos internacionais não têm capacidade para receber cargueiros. Mercadorias internacionais poderiam ser recebidas também em Viracopos, em Campinas/SP, por exemplo. Mas o custo operacional caríssimo de Viracopos inviabiliza a operação. Lá, só opera quem já está atuando desde o início, desde a inauguração daquele aeroporto. Um empresário que quiser operar de Viracopos, atualmente, não consegue pagar as altíssimas taxas de transbordo. Ou seja, tudo chega primeiro em Guarulhos.
E a entrada de quaisquer encomendas internacionais no Brasil é e deve ser fiscalizada com rigor porque, via de regra, qualquer suspeição pode configurar um problema de segurança nacional.
Acerca destas multas, o portal Mais Brasília (MB) teve acesso às informações a partir de funcionários que foram multados. Sob sigilo da fonte, expressamente previsto no art. 5º, inciso XIV da Constituição Brasileira, a redação conversou com três destes servidores multados. Ao MB, os funcionários revelaram que pessoas não autorizadas entraram no local. Estas pessoas teriam entrado neste recinto alfandegário para tratar a carga de um cliente internacional dos Correios específico. Nomes da alta cúpula da estatal sabiam do caso.
Essa informação, porém, seria apenas a ponta de um iceberg. De acordo com os funcionários ouvidos; dentre estes 26 funcionários afastados em meados de julho, mais ou menos metade deles, apenas cumpria ordens de superiores. Os empregados ainda adiantaram ao portal que a situação de pessoas não autorizadas entrarem no local os preocupa, pelo fato de Guarulhos ser um recinto alfandegário internacional, com cargas que chegam de todo o mundo.
“Se qualquer coisa suspeita ocorrer num local como Guarulhos, isso pode configurar um crime à segurança nacional do país. O zelo, a confiança nossa com nosso trabalho e com as mercadorias precisa ser total, tudo precisa ser passado no Raio X”, posicionou-se um funcionários ouvidos pelo MB.
O caso da batida da RF teria então, internamente, seguido para o Departamento de Segurança dos Correios, que é o responsável por proteger o patrimônio, apurar irregularidades e controlar o acesso de pessoas. O portal contatou gestores do departamento em questão.
Nessa quarta-feira (18), ao MB, a gerente corporativa da Gerência de Apuração e Avaliação de Vulnerabilidade, do Departamento de Segurança, Simone Barreto, ao ser questionada se haveria algum processo administrativo sobre o Terminal de Guarulhos, com conteúdo sigiloso, e, caso houvesse, se este processo seguiria ao não seguiria para a Polícia Federal (PF), Simone adiantou ao portal que “no âmbito das minhas atribuições não existe processo sobre o TECA Guarulhos a ser encaminhado à PF, como também não há investigação de descaminho sendo realizada pela RFB naquela unidade, como lhe informaram outrora”.
A gestora ressaltou ainda que “não encaminhei e nem tenho processo sobre o TECA Guarulhos a encaminhar para a PF”. Ao ser questionada acerca do afastamento dos funcionários, Simone disse que “não fez apuração sobre afastamento de empregados”. E acrescentou que “não saberia dizer [qual departamento está cuidando do caso], pois não sei o motivo desses afastamentos”.
Vale ressaltar que a reportagem questionou a gestora acerca de uma possível ida de um processo administrativo à PF apenas para saber se há ou não, no caso em questão, irregularidades de que sejam necessárias uma investigação policial. Apenas porque, caso uma apuração verifique a existência de possíveis crimes, os Correios têm que acionar à PF. Somente a PF pode determinar a existência ou não de um crime no local.
E, como é dever do empregado público reportar irregularidades, se um inspetor da estatal indicar em um processo administrativo que existe indício de prática de crimes, o Departamento de Segurança da estatal deve solicitar o apoio da PF. Porque os Correios não são um órgão acusatório, ele tem que pedir ajuda para a polícia, em quaisquer suspeições de crimes. Como os Correios é um órgão federal, chama-se a Polícia Federal.
Vale ressaltar ainda que, em nenhum momento o MB citou ou perguntou sobre crime de descaminho, assunto ‘adiantado/citado’ no diálogo pela gestora.
Procurado, o Superintendente Executivo do Departamento de Segurança, Leonardo Ogelio da Silveira Francisco, limitou-se a dizer: Por gentileza, enviar a sua demanda para a assessoria de imprensa”.
Sobre o caso em questão, o MB ainda demandou a assessoria de imprensa da estatal em dois momentos; o último, na manhã desta quinta-feira (19), especificadamente acerca das multas aplicadas pela Receita Federal ao CPF dos funcionários; ambos, sem sucesso.
O portal contou parte da história dessa fiscalização da Receita ao Terminal de Guarulhos em um trecho de uma reportagem, com subtítulo Rádio Peão, Chão de Fábrica e Batida da Receita Federal, veiculada no último dia 19 de agosto.
Ainda segundo os funcionários ouvidos pelo MB, um dos gestores dos Correios que, ao tomar ciência do caso posicionou-se de maneira correta foi Renato Aparecido Rosa, Superintendente Estatual de Operação de São Paulo, da região metropolitana. Rosa não foi multado, mas é o chefe de todos os servidores multados. “Rosa foi enganado, os caras estavam fazendo as coisas nas costas dele”, disse um dos funcionários. Num provável processo administrativo porém, Renato Rosa pode responder por ser chefe e saber do caso.
Ao Mais Brasília (MB), Rosa pediu que a reportagem tratasse a questão com a assessoria de imprensa dos Correios e limitou-se educadamente a explicar que, “a política de porta-voz da empresa [Correios] não permite que os funcionários falem à imprensa antes de passar pela assessoria”.
Sumiço de mercadorias de Miami
Enquanto isso, clientes internacionais, como o empresário brasileiro radicado em Miami, EUA, Wagner Santoro, CEO da W Prime Express Corp, continuam sofrendo. O portal trouxe parte do caso de Wagner no último dia 19 de agosto, ao revelar um ofício que o empresário encaminhou à Direção dos Correios, em janeiro deste ano de 2024, solicitando providências acerca do sumiço de 280 pacotes/caixas.
Em entrevista ao MB, Wagner Santoro contou que é cliente dos Correios desde 2017, que assinou um contrato com a estatal em 2020, mas que as mercadorias dele começaram a sumir em novembro de 2023.
“Já tinha acontecido de sumir alguma mercadoria antes, mas em pequena escala. E, à época, os Correios nos respondiam que havia desaparecido no fluxo”, disse. E continua: “Encaminhamos o oficio através de um sistema interno e supostamente privado chamado SEI, e a resposta que tivemos era que os objetos haviam desaparecido no fluxo e que estavam tentando localizar os mesmos. O pessoal de Curitiba, PR, foram sempre muito solidários e atenciosos a tal situação e sempre tentando nos ajudar ao máximo, infelizmente eles sempre tentaram avançar com as buscas; sem sucesso, pois são limitados, devido aos seus superiores no DF.”
O empresário revelou ainda que, “somando todas as perdas, o prejuízo dele deve passar de U$200 mil dólares, valor que convertido em real gira em torno de R$ 1 milhão.
Para além dos prejuízos econômicos, Santoro adiantou que os clientes dele, nos EUA, estão acionando a Justiça por causa das encomendas que sumiram dentro dos Correios. “Já recebi várias ligações de advogados”.
Durante estes últimos meses, mesmo com tantos prejuízos, o empresário conta que chegou a ser procurado por outras pessoas, para que ele colocasse a carga dele em outro contrato, em contratos de terceiros. “Uma das empresas que nos procurou foi a Cainiao, representada pelo senhor William Tang.” E acrescentou: “Nos procuram por dois motivos: por sermos os pioneiros no mercado americano e pelo nosso serviço de excelência muito comentado no mercado (The Best Customer Service).”
‘Lojas Piratas’
Segundo fontes ouvidas pelo MB, negociações em que é possível colocar um contrato no outro passaram a ser possíveis mediante mudanças no modelo de contratos que, de certa forma, não estão presentes na Política Comercial dos Correios.
Internacionalmente, essas mudanças possibilitaram a configuração dos chamados contratos Infinity, em que atravessadores internacionais lucram por meio de inúmeros benefícios e preços bem baixos a partir da quantidade de encomendas que encaminham para os Correios entregarem.
Nacionalmente, essas mudanças possibilitaram a configuração das “lojas piratas” [apelidadas assim pelos funcionários dos Correios], que são as integradoras nacionais, que utilizam toda a logística da estatal e conseguem lucrar por meio de quantidade de encomendas.
Vale ressaltar que a questão das integradoras mudou em julho deste ano, exato dia 11/7, quando a presidência dos Correios mudou a política em relação a elas.
Nesse dia, com uma publicação do boletim Primeira Hora, comunicação oficial interna dos Correios, a presidência da estatal comunicou aos funcionários a nova política da estatal para com as integradoras. No informativo, a atual gestão dos Correios, que comanda a estatal desde o final de janeiro de 2023, culpou o governo passado, do ex-presidente Jair Bolsonaro, pelos fatos denunciados. Os Correios não explicam, porém, porquê demorou-se tantos meses para definir quaisquer mudanças e/ou porque a estatal se posicionou, durante tanto tempo, a favor das integradoras.
Um dia antes da publicação do boletim Primeira Hora, na quarta-feira (10/7), o secretário-geral da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios, Telégrafos e Similares (FENTECT), Emerson Marinho, assumiu a autoria das denúncias internamente relativas às integradoras, apelidadas e conhecidas dentro da estatal por ‘agências piratas’, alegando “ser ele o iniciador de toda esta luta”, ainda em 2023. À época, a informação foi veiculada por Marinho em postagens nas redes sociais dele na quarta (10/7) foi confirmada também por ele ao Mais Brasília.
Vale ressaltar que a questão dos contratos Infinity e das integradoras virou inquérito policial sigiloso, sob o número nº 1019603-22.2024.4.01.3400”, e segue sendo investigado pela PF.
Ainda acerca das integradoras nacionais, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro (Sintect-RJ), Marcos Snt’Aguida, protocolou, na manhã do dia 7/7, uma denúncia no Ministério Público Federal (MPF).
Por Paula Coutinho/Mais Brasília
Foto: Agência Brasil
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