“O próprio negro é o primeiro racista”. Incontáveis vezes já ouvi essa sentença. Na infância, na adolescência, na fase adulta. Em casa de familiares, em rodas de amigos e em ambientes públicos, como numa sessão especial sobre a Consciência Negra em uma Câmara de Vereadores.
Na real, é o tipo de sentença que ignora o caráter estrutural do racismo; que desconsidera os efeitos perversos do racismo na autoestima, na saúde mental e na afirmação das pessoas negras enquanto seres humanos; e que serve apenas para manter as coisas como estão.
Mas é uma afirmação ainda muito presente em nosso cotidiano e bastante perigosa.
Pois o reforço dessa ideia é, para mim, um dos principais resultados do Big Brother Brasil.
Não acompanho o programa e posso estar enganado, mas acredito ser uma das edições com mais pessoas negras. E como essas pessoas negras estão sendo julgadas e condenadas? E não podemos esquecer, estão sendo julgadas e condenadas a partir das escolhas de edição de um programa que se alimenta essencialmente de violências psicológicas, de um querer ganhar do outro, passar por cima do outro.
Obviamente que ninguém está isento de ser vil e longe de mim defender sordidez, mas abundam por aí manifestações racistas contra pessoas negras que estão no programa.
Só que há, em minha opinião, um perigo ainda maior: as pessoas negras que estão no centro dos debates já tinham algum nível de visibilidade pública antes do programa e, sim, eram tidas como importantes vozes na defesa dos direitos da população negra e na denúncia do racismo.
De minha parte, jamais direi que “fulano não é militante”. Cada um faz a sua militância da forma que dá, nas condições que pode ou, até mesmo, convém. Quem nos concede o carimbo para dizer quem é ou não militante?
Então, em meu entender, quem diz que “tal pessoa não representa a militância negra” erra na estratégia. Evidente que ninguém consegue “representar” a militância negra, porque estamos falando de uma militância diversa, plural, heterogênea. Alguma militância não é assim?
E é aí onde localizo o perigo maior desse tribunal permanente virtual das redes sociais: ele se alia ao maior conglomerado de comunicação do país na tentativa de dividir a militância negra. É a perversa sofisticação do “o próprio negro é o primeiro racista”.
Não é uma iniciativa inédita, vale ressaltar. Lembro bem de uma reportagem no Jornal Nacional, quando estava quente o debate sobre as cotas raciais na universidade pública, em que o entrevistado contrário às ações afirmativas foi justamente um estudante negro da UnB.
Foi acaso a Globo ter escolhido um estudante negro, de uma das mais expressivas instituições públicas de ensino superior do país, para se posicionar contra as cotas no telejornal de maior audiência da televisão brasileira? Para mim, não. Basta lembrarmos do livro de Ali Kamel, à época diretor de jornalismo, com o título “Não somos racistas” e o subtítulo “uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”.
Essa estratégia é alertada por Emicida, na música Ismália, ao cantar que “primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles. Nega o deus deles, ofende, separa eles…”.
Escrevo tudo isso para dizer que, sim, não devemos permitir o linchamento de Lucas por quem quer que seja, mas também não podemos conduzir homens e mulheres negros/as como réus ao tribunal do ódio racista que se forma nas redes sociais…
Devemos cuidar de cada menino Lucas que cresce perto de nós, mas também devemos cuidar dos nossos pequenos Projotas, das nossas meninas Lumenas e das nossas jovens Karol’s…
Lembremos: cuidar não é passar a mão na cabeça, mas é chamar no canto, trocar uma ideia e lembrar o/a outro/a preto/a que a elite desse país segue a nos odiar. Nos odiar. Enquanto indivíduo e enquanto coletivo. Porque, como também canta Emicida, “cuidado, não voa tão perto do sol. Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei. O abutre quer te ver drogado pra dizer: ‘Ó, num falei?!’”.
Bom, são algumas palavras de quem não acompanha o BBB, mas que procurou ler sobre o assunto e está aberto ao debate…
Paulo Victor é jornalista e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA.
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