Um das mais constrangedoras e marcantes cenas que vivenciei no serviço público aconteceu em 1987, no gabinete do então secretário de Estado da Educação, professor Antônio Fontes Freitas. Estava lá porque como professor do quadro permanente do magistério estadual, lotado naquele ano no gabinete do secretário adjunto, o jornalista Carlos Alberto Souza, grande amigo recentemente falecido, fui designado para cobrir jornalisticamente a audiência especial concedida pelo titular da pasta a um grupo de estudantes.
Registro a parte, o Carlos Alberto não era da área da educação. Ascendeu ao cargo pelo bom relacionamento e o currículo que construiu como competente e digno profissional de imprensa, com passagens por veículos locais e na assessoria de comunicação do Governo do Estado. Na Secretaria de Educação praticamente não exercia atribuição pedagógica, sendo-lhe reservados apenas despachos burocráticos e, principalmente, a coordenação da área de comunicação. Para esse encargo, juntou alguns profissionais da área, eu, as jornalistas Luzinete Silva e Dayse Monte e o fotógrafo Juarez Silveira.
De volta à audiência, naquela manhã, o secretário Antônio Freitas abria seu gabinete para receber um grupo de estudantes do Colégio Ivo do Prado, do Bairro 18 do Forte. O encontro podia ser apenas mais um na rotina do competente comandante da política estadual de educação. Mas não foi ao menos prá mim, porque, de cara, me inquietava o fato de que para ter acesso ao secretário os dirigentes do grêmio estudantil tiveram que recorrer ao vereador Rosalvo Alexandre, o saudoso Bocão. Sem a muleta política, os estudantes não estavam seguros nem se seriam recebidos, muito menos terem o pleito atendido.
E, justamente o pleito foi o outro ponto a chamar minha atenção. E o que de extraordinário eles reivindicavam? Simplesmente que fosse revogada a ordem do diretor da escola que proibia a utilização da quadra, nos finais de semana, para os ensaios da quadrilha junina. Na audiência, enquanto os estudantes atentos ouviam a falação do vereador, advogando o pedido estudantil, eu que deveria está anotando tudo, me peguei mergulhado no passado. Lembrei quando ainda na primeira fase da adolescência tive algumas vezes que correr da polícia porque no final de semana ousara pular o muro da “minha” escola, o Grupo Escolar José Augusto Ferraz, no Bairro Industrial, para jogar bola com os amigos, na piçarra do pátio do prédio público.
Olhando aqueles adolescentes apreensivos e esperançosos em obter a preciosa permissão, recordei que me questionava quando após a fuga ao ouvir a sirene da polícia, se realmente aquela escola que me fora ensinado que era um prédio público, portanto, do povo, realmente me pertencia por ser seu aluno. A ideia de pertencimento não fechava e aquela audiência não só reforçava o meu questionamento juvenil, como me fazia agora compreender porque não foram poucas às vezes que com baladeira, quebrei lâmpadas e vidraças da minha escola. Lembrei ainda como com o sentimento de revide me divertia vendo o velho Mano, porteiro da escola, cerrando as correntes para se livrar dos cadeados entupidos de palitos de fósforos.
Meses depois dessa audiência, fomos chamados ao gabinete do professor Fontes Freitas para discutir campanha publicitária, objetivando reduzir o assustador índice de vandalismo que sofriam as escolas públicas, especialmente dos bairros periféricos de Aracaju. O mote da campanha, mesmo com meu voto contrário, focava a beleza dos prédios escolares entregues a comunidade pelo estado e a transformação que os mesmos sofriam em conseqüência da depredação criminosa. Foi produzida uma excelente peça para televisão centrada numa bela foto do Colégio Atheneu. A imagem, inicialmente aberta em plano distante e desfocado, ia se aproximando lentamente, ficando mais nítida, ao tempo que se quebrava. No áudio, a mensagem de que a escola pública era do povo, por isso, o povo deveria cuidar e preservar.
Apesar de tecnicamente bem elaborada, não acreditava na efetividade da campanha. A questão da preservação dos prédios públicos não deve ser encarada apenas como vandalismo. Isso pode ser a reação, consequência. Tem-se que focar a motivação dessa ação destruidora que na sua gênese, entendo, está também vinculada ao pertencimento como ideia e realidade. Não adianta ensinar que o bem público é do público, se a relação da população é de simples usuário temporário e limitado. O proprietário, o dono do bem público para o povo é o Estado, aquele gigante pesado, abstrato, arrecadador e corrupto que domina, explora e esmaga. Só com mudança de paradigma a partir de novas concepções da relação Estado X Povo, será possível construir relação diferenciada da população com os bens públicos.
Na Copa do Mundo no Brasil, em 2014, ficamos encantados com os japoneses limpando os estádios no final dos jogos. Isso, certamente eles não aprenderam adultos, mas, na infância, na educação doméstica e na escola. A reação de aplauso não foi a mesma, ao menos entre alguns dos nossos professores, quando vídeos que circularam nas redes sociais, mostraram estudantes japoneses limpando os sanitários das escolas. A desaprovação a prática das crianças orientais não foi diferente da rejeição por parte dos dirigentes sindicais do magistério público, que recentemente criticaram o Projeto Escola Limpa, realizado nas escolas públicas estaduais da região sul do Estado. A iniciativa gerou polêmica porque, principalmente, estimulava a participação dos alunos na limpeza das escolas.
Não se trata de substituir os trabalhadores da área de serviços gerais, ou suprir as suas carências, com a mão de obra estudantil. No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Educação com o Programa Família na Escola, estimulou a integração e a participação da comunidade na escola. Conheci experiências semelhantes na Inglaterra, quando, em 2001, integrei missão de Secretários de Educação do Brasil naquele país europeu. Acredito que ensinar o aluno a cuidar de sua escola também faz parte do processo de construção de cidadania, assim como, o pertencimento real em substituição a concepção de usuário temporário e limitado. É que continuo teimoso e ainda mais ranzinza, convicto de que quem ama, cuida e quem cuida não destrói.
Nilson Socorro é jornalista, professor, advogado e ex-secretário de Estado da Educação de Sergipe.
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