Estamos em junho, o mês das festas juninas. O Nordeste acorda multicolor, enfeitado de bandeirinhas, e no ar já se sente o chamado antigo — eu já escuto teus sinais, como quem anuncia que a festa vai começar. É tempo de acender fogueiras, preparar a mesa farta, vestir xadrez e celebrar uma das tradições mais bonitas e simbólicas do nosso povo.
E se tem uma coisa que o tempo não apaga, é a memória viva dos bons São Joões que Aracaju viveu — especialmente ali, entre os anos de 1950 até o início dos anos 1990, quando a festa era mais do que diversão: era expressão de cultura, fé, partilha e comunidade.
Naquela época, as festas juninas eram bem diferentes. E quando digo diferentes, é no melhor sentido da palavra. O São João era coletivo, feito de mãos dadas, de vizinhos que se ajudavam, de famílias que planejavam, meses antes, cada detalhe da festa que não era só da casa, mas de toda a rua, do bairro, da comunidade.
A cidade se transformava em um grande arraial a céu aberto. As ruas disputavam entre si quem colocava mais bandeirinhas, quem fazia o mastro mais bonito, quem armava a fogueira mais alta. E era comum haver até competição da rua mais enfeitada e alegre.
Nas periferias, a festa ganhava alma e verdade. Cada beco, cada ladeira e cada comunidade acendia seu próprio braseiro de alegria. Os arraiais eram sagrados — no Novo Paraíso, o Arraiá do Josa ecoava com o ronco da zabumba enquanto o toque da sanfona chamava o povo pra dança, entre bandeirinhas balançando no cordão e o cheiro de milho assando.
Logo adiante, o Arraiá das Veias mantinha viva a tradição, disputando público com o Arraiá do Josa — era aquela lá e cá dos forrozeiros para ver onde tava melhor, muitos chegavam a cavalo, bicicleta ou a pé, e os mais abastados vinham em seus automóveis.
Vez ou outra, a confusão comia no centro do arraial — principalmente quando algum gaiato acendia o temido cordão cheiroso, aquele que tinha um fedor tão insuportável que fazia a turma se dispersar, gargalhando.
E bastava um mais assanhado se afoitar além da conta, quebrar as regras da dança, que o sanfoneiro, ligeiro que só, puxava no gogó, chamava pelo nome e lascava: — “Ô, Zé das Candongas, o senhor tá dançando armado!” Aí não tinha quem segurasse. O cabra ajeitava o chapéu, saía desconfiado, e a mulherada se acabava na risada, batendo palma e gritando: “Eita, foi pego no flagrante!”
No alto do bairro América, o Arraiá do Alto do Miolo iluminava a cidade com o rufar dos tambores no toque da sanfona e o trin lim lim do triângulo — o forró comia até a madrugada.

E quando a noite engrossava, o Arraiá do Arranca Unha, no Cirurgia, virava lenda. A sanfona suava, a zabumba trovejava e os corpos se dobravam no forró até o dia raiar — criando um mapa de quem não sabia ficar parado.
As noites começavam muitas vezes com as novenas, rezadas com fé e devoção a Santo Antônio, São João e São Pedro. Era bonito de ver. E tão logo o “amém” se confirmava, o altar era desmontado, as cadeiras afastadas e… pronto: o fole comia na sala! A sanfona puxava os primeiros acordes e ninguém ficava parado.
Os sanfoneiros eram os verdadeiros reis daquela época. Muitos, filhos da própria comunidade, tocavam por puro amor à tradição. Não se falava em cachê, em contrato, em camarim. O que importava era a alegria de ver a sala, o terreiro ou a rua lotados de gente dançando agarradinho, sorrindo, celebrando a vida ao som da sanfona, do triângulo e da zabumba.
E se o fole puxava clássicos como “Olha pro céu, meu amor…”, de Luiz Gonzaga, ou “São João na Roça”, do Trio Nordestino, o povo respondia na mesma sintonia: pés no chão, coração leve e aquele sorriso que só o São João sabe desenhar no rosto do nordestino.
E claro, nenhuma noite de São João começava sem o acender da fogueira. Cada família preparava a sua, maior ou menor, dependendo das condições financeiras, mas todas acesas com o mesmo orgulho. Ao lado, erguia-se o tradicional mastro, muitas vezes feito de mamoeiro macho verde, bonito, liso, adornado com fitas coloridas e a imagem do santo protetor.
Aracaju virava um espetáculo de fogo e luz. As ruas se enfileiravam com fogueiras em linha dupla, formando verdadeiros mares de fogo, que se estendiam por todos os cantos da cidade. Do centro às periferias, o cheiro de madeira queimando, de milho assando e de licor fervendo invadia as noites.
Quando a fogueira começava a virar brasa, outra tradição tomava conta: os batizados na fogueira e os casamentos simbólicos. Crianças e jovens eram “batizados” na tradição do fogo, sob muitas risadas e brincadeiras. Casamentos fictícios também aconteciam, tudo no espírito da folia, reforçando os laços da comunidade.
E para os mais corajosos, tinha as famosas batalhas de busca-pés. Dois grupos se enfrentavam em terrenos abertos, lançando fogos de artifício uns contra os outros. Era preciso ter coragem. Por isso, iam protegidos com roupas molhadas e luvas de couro, tentando escapar das faíscas e dos estampidos. Um espetáculo de luz e barulho, onde a bravura e a camaradagem se misturavam.
E se a música não parava, a mesa também não. A culinária junina era outro espetáculo à parte. Cada casa montava sua mesa farta: milho cozido, pamonha, canjica, pé de moleque, bolo de macaxeira, bolo de puba, mungunzá e o famoso licor de genipapo, de jenipapo ou de caju. Era fartura partilhada, onde ninguém ficava de fora.

Hoje, o forró mudou muito. Misturou-se com outros ritmos, ganhou palcos enormes, cachês altíssimos, mega-festas. É outra realidade, outros tempos — e temos que aprender a conviver com isso sem perder a ternura.
Esse era o São João que se fazia em Aracaju… Um São João que tinha cheiro de fogueira, sabor de milho quentinho, som de sanfona chorando alegria e aquele calor que não vinha só do fogo, mas do abraço, do riso solto, da mesa compartilhada.
Era um tempo em que a grandeza não estava nos palcos iluminados nem nos cachês generosos, mas sim na beleza singela da união, no prazer de ver vizinhos, amigos e famílias inteiras de mãos dadas, dançando de rosto colado, vivendo a pura magia de estar junto, de ser comunidade, de celebrar a vida sem pressa e sem medida.
O São João era mais que festa. Era afeto aceso. Era memória costurada no som do fole, na fumaça que subia pro céu, nos sabores que só aquela mesa sabia servir.
E enquanto o fole tocava, parecia até que o próprio Luiz Gonzaga cantava nas esquinas, lembrando:
“Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João,
Eu perguntei a Deus do céu, ai, por que tamanha judiação?”
E quando a última fagulha da fogueira subia ao céu estrelado, a gente entendia…
Ali havia um fogo que não queimava só madeira — ele aquecia a alma, reacendia laços e deixava aceso, no peito de cada um, o eterno desejo de nunca deixar essa chama se apagar.
Emanuel Rocha é historiador, coautor dos livros Bacias Hidrográficas de Sergipe e Bairro América: A saga de uma comunidade. Também atua como repórter fotográfico e poeta popular.
*Este é um artigo pessoal de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Hora News.
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