Os dedos duros da ditadura militar em Estância

Depois do golpe militar de 64 nunca se falou tanto em tomada do poder pelos milicos como nesse ano de 2020 pelas bocas dos bolsonaristas. Uns de forma consciente, as viúvas ideológicas do autoritarismo, outros são pessoas carentes de informação.

A figura do “dedo duro” durante os regimes ditatoriais ganhava relevo por motivos variados, em alguns casos os delatores incriminavam os seus desafetos políticos para limpar o caminho nas disputas, outros delatavam em troca de benefícios, e tinha também aqueles que achavam que uma delação os livrariam de qualquer dúvida de qual lado estavam.

Recordemos que o último golpe militar no Brasil aconteceu no dia primeiro de abril de 1964, e não trinta e um de março como está nos registros oficiais, para fugir do dia da mentira.

Durante o referido golpe o presidente João Goulart foi deposto e fugiu para o Uruguai, e aqui em Sergipe o governador Seixas Dória além de perder o cargo foi detido pelo Exército no Palácio Olímpio Campos (Praça Fausto Cardoso) e levado para quartéis aqui em Sergipe e também na Bahia e finalmente foi cumprir pena no presídio da Ilha de Fernando de Noronha.

Dos municípios sergipanos foram depostos e presos pelo Exército os prefeitos de Estância, Manuel Pascoal Nabuco D´Ávila, o de Propriá, Geraldo Maia e o de Capela, José Figueiredo.

Em obra autobiográfica o ex-preso político e ex-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe Pascoal Nabuco dedicou somente dois capítulos sobre aquele momento sombrio em Estância, uma pena, em minha opinião mereceria uma obra completa sobre o tema ditadura e prisão.

Talvez, passadas tantas décadas ele tenha preferido não expor os dedos duros de Estância que atuaram como seus algozes por razões que ele levou para o túmulo.

Pascoal antes de ser promotor, juiz e desembargador, foi professor de História na Escola Técnica de Comércio de Estância, e adotava uma linha progressista em suas aulas, fato que incomodava os coronéis de gravata de mentalidade provinciana.

O “frangote” de quarenta e nove quilos e apenas vinte e seis anos de idade, com o seu discurso forte em sintonia com as reformas de base do presidente João Goulart, derrotou as oligarquias de Estância com apoio majoritário de estudantes e operários, mas acredito que os padrinhos políticos, Francisco de Araujo Macedo, proprietário do Jornal Folha Trabalhista com influência em todo o estado, e de sua esposa Núbia Nabuco Macedo, primeira prefeita mulher de Sergipe, foram fundamentais para a sua vitória.

Se o alinhamento do jovem Pascoal às idéias de João Goulart e Seixas Dória o ajudaram a chegar ao paço municipal da cidade das professoras Elza e Jandira Amado, de maneira diametralmente oposta contribuíram para a sua deposição do cargo de prefeito e prisão.

O seu mandato durou de fevereiro de 1963 a 17 de abril de 1964, quando foi preso na casa dos seus pais e levado inicialmente para a sede do TG – Tiro de Guerra da cidade, e depois recambiado para o 28º Batalhão de Caçadores do Exército em Aracaju.

A sua mãe (Dona Maria de Lourdes Nabuco D`Ávila) que estava com problemas de saúde teve o quadro agravado com a prisão do filho, e veio a falecer pouco tempo depois, e por esse motivo o comando do exército o escoltou até a Estância para ver a sua genitora (ainda em vida). Na ocasião foi recebido por estudantes e operários.

Mesmo antes de qualquer julgamento os agentes da ditadura ordenaram que a câmara de vereadores procedesse a substituição do prefeito Pascoal Nabuco, e como acontecia nesses casos o presidente do parlamento municipal assumia. Naquela ocasião o presidente da Câmara de Vereadores era Alizi Cardoso Costa e por isso assumiu a prefeitura de abril de 1964 a outubro de 1966.

Eu não só conheci Alizi como trabalhei com ele, homem de pouca conversa, extremamente simples, percebia-se que era avesso às solenidades, e sentia-se melhor tomando uma cachacinha com pessoas humildes. Quanto as posições políticas, era de direita, haja vista que foi quadro da ARENA e do PDS. Alizi era casado com Dona Cordélia, filha de João Nascimento Filho (o amigo-irmão do escritor Jorge Amado).

Outro que foi vigiado em tempo integral pela ditadura foi o Padre Almeida – eu tive o prazer de conhecê-lo – que no final da vida foi candidato a deputado estadual pelo PT e naquela eleição (2002) eu também fui candidato a deputado federal também pelo Partido dos Trabalhadores, e de vez em quando nos encontrávamos nos palanques.

Mesmo antes da eleição eu já o conhecia das atividades voltadas ao cooperativismo e também ouvia os comentários pejorativos contra o religioso por sua atuação no MEB – Movimento de Educação de Base criado em 1961 a partir de amplos debates com intelectuais que formularam um projeto de educação que concebia o alfabetizando como sujeito da história e não como objeto.

O MEB era visto pela ditadura como instrumento disseminador de idéias comunistas, e por isso foi extinto e em seu lugar surgiu o MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, que se limitava a ensinar a ler e escrever “precariamente” e sem qualquer estímulo à reflexão.

Com o golpe de 64 vieram as perseguições ao MEB e o Padre Almeida foi uma das vítimas, que por algumas vezes sentiu a força da inquisição da ditadura militar, mas ele era destemido e nada o silenciou, nem a pressão do próprio clero conservador.

Certa vez eu o cutuquei e perguntei quem eram os dedos duros de Estância e ele, respirou, olhou para mim serenamente, passou a mão na careca suada e apontou pelo menos cinco. Como testemunha que já morreu e não deixou nada escrito não vale, eu não vou citar os nomes das figuras para não receber mais um processo.

Pascoal Nabuco que foi cassado e preso pela ditadura injustamente, em sua autobiografia se ateve a nominar o episódio da conspiração dos dedos duros como “politicagem”, mas não citou um único nome. Imagino que as marcas das perseguições já estavam cicatrizadas na memória.

Pascoal Nabuco tomando posse como prefeito de Estância

No relatório dos inquisidores e do serviço de informação do governo militar não consta qualquer crime na conduta do jovem prefeito, fato que comprova que ele foi vítima de um conluio de delatores que foram derrotados por ele no voto popular.

A primeira prisão de Pascoal aconteceu como já citei em 17 de abril de 1964 (e foi até 17 de junho), poucos dias após a decretação da quartelada que levou as forças armadas ao poder, e na segunda a cana, digo, sentença foi maior, um ano e nove meses na casa de detenção de Salvador, mas por conta de um recurso saiu com oito meses, inocentado por um tribunal militar.

As acusações contra Pascoal eram as mais canalhas possíveis, e como geralmente acontecia os depoentes eram pressionados a responder o que os inquisidores queriam ouvir, exceto nos casos dos dedos duros, esses faziam questão de inventar provas.

Uma foto de alguém com qualquer figura do PCB – Partido Comunista Brasileiro era motivo para prisão, e Pascoal apareceu em uma delas com o conhecido Agonalto Pacheco (Aracaju) que foi da luta armada contra a ditadura e só foi solto em troca do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros. Agonalto Pacheco e mais 15 presos políticos saíram da prisão e se exilaram em Cuba.

Vale lembrar que Pascoal era um nacionalista, um homem progressista que se opunha à ditadura, mas não era um comunista. É de conhecimento público o carinho que Pascoal nutria pela Escola Técnica de Comércio (fui aluno lá com bolsa de estudo por ser atleta de futsal), e lá ele influenciou e foi influenciado, tanto que na campanha eleitoral a defesa da educação estava presente em seu programa de governo.

Sobre Agonalto tentei levá-lo a CUT em Aracaju para falar sobre as memórias vividas por ele durante a ditadura militar, mas o velho comunista já estava doente, não tardou e morreu.

Pascoal ainda muito jovem dirigiu o Jornal Folha Trabalhista, estigmatizado pela ditadura como Folha Comunista (que já não existe mais), e Miguel Viana foi um dos últimos jornalistas que honraram a tradição do jornal combativo que teve papel destacado durante o regime militar.

Eu escrevi uma coluna na FT durante um curto período, acho que por dois anos, mas reconheço que a minha contribuição ao jornal foi infinitamente menor do que a do companheiro Miguel, que a chamava de “Folha da Resistência”.

O Jornal jamais foi impresso eletronicamente, o trabalho de montagem era todo artesanal, tipo a tipo, e sobre isso há uma curiosidade, os filhos de Alvenar (tipógrafo) desenvolveram a leitura ajudando ao pai na gráfica.

Lembro-me com nostalgia do velho jornal que não suportando as dezenas de processos e pedidos de indenizações por danos morais, bateu as portas. O determinismo histórico foi derrotado para o bem da dialética e da pluralidade política, digo isso baseado em experiência própria.

O meu pai teve origem camponesa no povoado de Poço dos Bois, município de Cedro de São João (SE), era um trabalhador que acumulava duas atividades, uma no cabo da enxada e a outra concomitante como tropeiro tocando uma junta de burros, e somente depois mudou-se para Estância fugindo da seca e se aventurou no ramo de bodegueiro (Bairro Santa Cruz), depois abriu um pequeno comercio na feira. Nasceu pobre e morreu pobre, mas uma coisa mudou na vida dele, a visão política.

Assim como muita gente simples da época semi-analfabeto só votava nas oligarquias, mas no caso dele já no fim da vida se converteu ao PT, e eu tenho quase certeza que foi depois que eu fui candidato e Deputado Federal pelo partido. Ver o meu pai com mais de oitenta anos brigar ao defender o governo Lula, foi para mim a prova cabal de que a educação política pode mudar o Brasil.

Ainda tive a oportunidade de falar com ele quando o mesmo já morava em Aracaju, sobre o que representou a ditadura, o processo de alienação, repressão etc.

No ambiente familiar eu ouvia na hora do café o meu pai reproduzir o discurso da ditadura, falava mal dos comunistas, atacava o velho MDB e achava o máximo receber a visita de um “chefe político”. Coisa de gente humilde sem instrução política. A minha mãe era muito mais atenta aos fatos, não tinha admiração pela pelos reaças.

Tem coisas que marcam e uma delas foi durante a campanha presidencial de 1989, primeira vez que Lula disputou a eleição, e eu estava panfletando na feira um material em preto e branco com a careta de Lula e ao entregar a uma senhora de idade em uma banca de vender bananas, ela retrucou: “eu não quero isso porque eu não gosto de comunista”, e eu respirei fundo e perguntei, mas o que é um comunista para a senhora? E ela embaraçada respondeu depois de titubear: “e eu sei lá da peste”.

Cada época com os seus reacionários, e se um novo golpe acontecer eu não tenho dúvidas de que a maioria dos dedos duros serão os bolsonaristas, e as vítimas serão os militantes do PT.

Em tempo: a casa onde Pascoal Nabuco foi preso em 1964 foi adquirida pelo governo do estado e transformada em memorial da cultura estanciana, e contraditoriamente não existia – enquanto durou – uma única alusão ao preso político que morou nela.

Hoje a casa está em ruína e a prefeitura pretende construir no local um teatro, só que para isso terá que demolí-la, o que na minha opinião é um erro, uma vez que o prédio em si é parte da história política da cidade.

Há quem defenda que assuntos negativos como o que aconteceu com as vítimas da ditadura devem ser esquecidos, porém, não é isso que pensa as vítimas do holocausto na Europa, que preservam a memória daquela época (Nazifascismo) inclusive em museus e mantém abertos à visitação os campos de concentração, por entenderem que não deixar esquecer faz parte da educação política.


Rubens Marques é professor da rede estadual de ensino e ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores em Sergipe.

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