Obesidade mental

Para muitos o “bom dia” deixou de ser a primeira saudação aos familiares no início do dia. Ao acordar, olhar o smartphone para só então levantar “atualizado” com os acontecimentos e conversas nas redes sociais se tornou um hábito, ou vício, para muitos. A obsessão pelos conteúdos online continua ao longo do dia, no banheiro, durante as refeições, antes de dormir, no trânsito, no trabalho ou durante os estudos: para qualquer lado em que se olhe há sempre alguém com o olhar preso a uma tela de algum dispositivo móvel. Atraídas pelas notificações dos aplicativos instalados em seus smartphones, as pessoas estão sempre verificando conversas em grupos do WhatsApp, curtindo imagens no Instagram, acompanhando a vida de famosos no TikTok, entre outras atividades online.

No Brasil, cerca de 24,3 milhões de crianças e adolescentes, com idade entre 9 e 17 anos, são usuários de internet, o que corresponde a 86% do total de pessoas dessa faixa etária no país. Na faixa etária dos que têm entre 15 e 17 anos e que são usuários de internet, quase 97% possuem perfil nas redes sociais de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2018, divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Com as redes sociais, passou-se a acreditar que quem não é visto é esquecido, quem não aparece não existe, não faz parte da realidade. As pessoas têm se alimentado das imagens uns dos outros e alimentado os desejos de quem quer ser visto e o poder da imagem nunca foi tão forte: com alguns cliques para que cores, brilhos e contrastes sejam manipulados, através de cortes e filtros, as imagens fascinam, seduzem, criam apetites, despertam gostos, vendem ilusões e também adoecem as pessoas. Fotos de momentos supostamente maravilhosos, corpos seminus, vídeos de danças sensuais, refeições, bebidas, viagens, roupas, sapatos, praias, piscinas, entre outros conteúdos, criam a impressão de que a vida dos outros é sempre melhor que a vida de quem consome essas imagens desencadeando ansiedade, inferioridade, baixa autoestima ou frustração quando a foto publicada não rende a quantidade de “likes” esperada, por exemplo. Não é à toa que um estudo conduzido em 2017 pela Royal Society for Public Health (RSPH), instituição inglesa independente e multidisciplinar dedicada à melhoria da saúde pública, apontou o Instagram como a pior plataforma para a saúde mental dos usuários.

Como se expor nas redes sociais passou a ser sinônimo de importância e de ser aceito, muitos estão dispostos a fazer quase tudo para ganhar visualizações e “likes” num constante bombardeamento de imagens e informações, que na maioria das vezes não constroem conhecimento, mas perpetuam um ciclo de exterioridade e imediatismo sem fim. A produção de conteúdo banal, superficial e inútil por muitos dos milhares dos assim chamados “influenciadores digitais” e o consumo exagerado de informações de entretenimento rasas, inúteis e infantilizadas no mundo digital contemporâneo têm gerado uma “obesidade mental” que dificulta o pensamento reflexivo, crítico e independente. Ainda que não seja um diagnóstico oficial de uma doença, o termo “obesidade mental” tem sido usado para explicar a excessiva produção e consumo de conteúdo digital.

Jovens brasileiros chegam a passar 8h por dia na interne (Foto: NatureAddict
Pixabay)

Para o filósofo e pós-doutor em discurso imagético pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, João Flávio de Almeida, o grande consumo de informações de baixa qualidade tem impedido as pessoas de pensar em conteúdos diferentes, produzido estafa mental e levado a incapacidade de captação dos conteúdos realmente interessantes e relevantes. Em um outro artigo publicado pelo Hora News (Dependência Tecnológica) chamei a atenção para o fato de que as redes sociais e os aplicativos foram desenvolvidos para roubar tempo, atrair a atenção e derrubar a capacidade de autocontrole tornando cada vez mais difícil usá-los com moderação. Isto se aplica principalmente aos adolescentes e jovens, alvos perfeitos a serem explorados pelos criadores das redes sociais e aplicativos, já que nesta fase da vida eles têm menos poder decisório e menor capacidade de decidir o que é bom ou não é uma vez que, de acordo com a ciência, a formação total de seu cérebro só acontece entre os 20 e 25 anos.

A pesquisa “Social media use and anxiety in emerging adults”, publicada no Journal of Affective Disorders, em 2017, apontou para o alto risco de incidência de distúrbios de ansiedade em associação com o uso das redes sociais por jovens adultos. Shirley Cramer, Executiva Chefe da RSPH, afirma: “As mídias sociais podem ser mais viciantes que o cigarro e o álcool e estão tão presentes na vida dos jovens que não é mais possível ignorá-las quando falamos das questões relacionadas a sua mental”.

Dados de uma pesquisa pioneira da Universidade Federal do Espírito Santo, realizada em 2019 com 2 mil adolescentes entre 15 e 19, mostrou que 25,3% são dependentes moderados ou graves de internet com o número de casos de ansiedade entre os dependentes tecnológicos chegando a 34%. É cada vez maior o número de ocorrências de transtorno alimentar e comportamento agressivo entre um número crescente de jovens completamente dependentes da conexão virtual, com dificuldade de controlar o uso da tecnologia, com dificuldade de diálogo e relacionamentos presenciais e, consequentemente, com sérias dificuldades de convívio outras com pessoas.

As interrupções causadas pelas notificações das dezenas de aplicativos instalados em seus smartphones têm tornado a atenção fragmentada, comprometido a capacidade de reter e processar informações de forma eficaz e dificultado o aprendizado e a reflexão mais profundos. “Viver apenas o mundo digital é problemático. O indivíduo deixa de ter contatos reais: não conversa com amigos pessoalmente, não joga bola, não faz atividades em que há proximidade humana”, alerta a psicóloga Priscila Gasparini Fernandes.

Steve Jobs acreditava que todo mundo deveria ter um iPad, mas não deixava seus filhos
usarem um (Foto: AFP)

Assim, temos jovens e adolescentes especialistas no uso de computadores, celulares, tablets e outras mídias digitais, mas ansiosos, desconectados de si mesmos, vivendo relações online superficiais, que são desfeitas com um simples comando de bloquear ou excluir e que não toleram frustração. Obesos mentais preocupados com as aparências, hipnotizados pelo que mostram as telas e que convivem com um vazio gigantesco que não é preenchido por nada. Vidas reduzidas a serem vitrine para os outros e tornar pessoas estúpidas famosas.

Crianças, adolescentes ou adultos, ninguém está livre de ter sua saúde mental abalada e com o ritmo de vida cada vez mais acelerado e fugaz, tem se tornado difícil para muitos perceber o perigo de se contentar com as aparências e superficialidade das coisas. As tecnologias digitais se tornaram uma necessidade moderna. Ouso de aplicativos ou redes sociais não é ruim. A questão é como este uso se dá. Não podemos nos esquecer que nem toda informação agrega conhecimento, que nem todo conteúdo da televisão e da internet formam ou informam, que há uma diferença significativa entre aparência e realidade e que nem toda imagem curtida ou compartilhada corresponde à verdade. Para aprender a viver é preciso construir conhecimento da realidade e ela não é simplesmente o que está nas imagens postadas e curtidas todos os dias, mas também e principalmente o que está dentro de nós.

Recomendações da Sociedade Brasileira de Pediatria para o uso saudável de telas digitais

• De 0 a 2 anos a criança não deve ter qualquer exposição a telas de dispositivos móveis.

• Entre 2 e 5 anos, no máximo 1 hora diante de tela.

• De 6 a 10 anos, entre 1 e 2 horas ao dia. • Dos 11 aos 18 anos, exposição máxima de 3 horas por dia diante de telas, incluindo videogame, equilibradas com a prática de atividade física.

• Não permitir que o jovem se isole no quarto com computador, smartphone, tablete ou celular. O uso deve ser feito em áreas comuns da casa.

• Não permitir acesso ao celular durante as refeições.

• Adotar um “dia sem conexão”, em que todos deixam os dispositivos móveis de lado por algumas horas para estimular o convívio em família.

• É fundamental que os adultos também façam um uso racional de computadores, celulares e redes sociais. Dar o exemplo é a melhor maneira de educar os outros.


Murilo Lima é analista comportamental, coach e especialista em gestão de empresas e empreendedorismo e articulista do Hora News. Possui também formações em desenvolvimento de líderes, desenvolvimento estratégico e gestão da criatividade e inovação. Atualmente é gerente comercial da Jovem Pan Aracaju e mentor voluntário da ONG Projeto Gauss.

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