Saúde nas Entrelinhas – Não bastasse as atrocidades que presenciamos durante a pandemia da COVID-19, essa semana o presidente fez o que imaginaria ser impossível.
No início desse mês foi para a mesa da Presidência da República projeto de Lei nº 6330/2019, que propõe alterar a Lei 9656, de 3 de junho de 1988 (Lei dos Planos de Saúde), para ampliar o acesso a antineoplásicos domiciliares de uso oral pelos usuários de planos privados de Assistência à Saúde. Ele vetou.
O que isso quer dizer?
Em 1988 quando a lei foi promulgada, o tratamento sistêmico contra o câncer era feito basicamente por drogas venosas. Ela torna obrigatória a cobertura pelos planos de saúde para todas as medicações de aplicação venosa aprovadas pela ANVISA. Naquela época, não existia quimioterapia oral. Em 2021 a oncologia oferece dezenas de quimioterápicos orais para tratamento de diversos tipos de câncer, mas a lei escrita em 1988 não imaginava isso.
A Agência Nacional de Saúde, que regula os planos de saúde, promove uma reunião a cada dois anos para discutir a inclusão de novas drogas no roll de medicações de cobertura obrigatória. Alguns quimioterápicos orais já foram contemplados, mas muitos não.
Essas drogas, sem dúvida de alto custo, podem mudar a história natural de um paciente oncológico, seja por aumentar as chances de cura, seja controlando por mais tempo uma doença metastática. São drogas novas, modernas e seguem a linha de um caminho sem volta. A grande maioria das medicações antineoplásicas recentemente desenvolvidas e que estão em desenvolvimento são de administração oral.
Nova Era
Em um passado relativamente recente, as grandes descobertas científicas eram realizadas em universidades públicas ao redor do mundo e o conhecimento considerado um bem público. Com a criação de grandes empresas e corporações, a pesquisa e o desenvolvimento de novas drogas ficou nas mãos de empresas privadas com fins lucrativos, muitas delas de capital aberto, que não desenvolve medicações para ajudar pessoas, mas sim, para ganhar dinheiro.
Estamos vivendo essa situação nesse exato momento. Imagine uma realidade de vulnerabilidade mundial, uma pandemia de um vírus potencialmente mortal. Milhares de mortos e famílias dizimadas e uma corrida comercial pelo desenvolvimento de vacinas. Vacinas patenteadas e vendidas aumentando o lucro e o valor das indústrias que as desenvolveram. Isso é errado? Na lógica atual não, mas se a humanidade toda padecer da doença e não sobrar ninguém para comprar ações não faz o menor sentido.
Empresas farmacêuticas gastam milhões no desenvolvimento, na implantação e comercialização de novas drogas e esse preço é repassado de maneira exorbitante em cada dose que será aplicada. Os governos são sempre criticados por não fornecê-las, mas não vejo industrias serem questionadas pelos valores cobrados.
A vida não tem preço, mas a saúde tem custo
Ouvi essa frase há muitos anos de um sábio gestor em saúde e ela ficou bem gravada na minha memória. É fato que a vida do amor de alguém não tem preço, mas o tratamento sempre vai ter custo, afinal não existe almoço grátis. Alguém sempre vai pagar a conta.
Como o assunto envolve somente saúde privada (o que também acho absurdo, afinal saúde é um dever do Estado e todos somos iguais perante a lei), quem paga a conta são os planos de saúde que como escrevi na coluna passada tiveram 49,5% de aumento no lucro em 2020. Segundo o presidente mito, a autorização para incorporação das medicações orais contra o câncer no roll da ANS tornaria insustentável a existência de planos de saúde. Mitou.
O Brasil é um dos países com maior taxação de impostos do planeta sem o menor compromisso de entrega de serviços. Pagamos planos de saúde porque um direito constitucional nos é negado. Arrume a casa e ofereça para todos, negocie co-participação nos custos, sente com a indústria e se entendam ou, o meu sonho, financie universidades púbicas para serem melhores que as indústrias. Dinheiro não falta, falta compromisso com um fim que não seja a autopreservação política de todas as espécies que já sentaram na mesa da Presidência da República, com uma bela foto própria e a bandeira de um Brasil sangrando ao fundo.
De um lado industrias multimilionárias cobrando preços absurdos por medicações, do outro seguradoras milionárias de saúde não querendo pagar o preço. No recheio, milhares de vidas desesperadas lutando contra o câncer que enxergam alguma possibilidade de viver ou viver melhor, e um governo que só pensa em autopreservação.
O veto presidencial é mais uma lástima da triste história sem sentido do Brasil. Acordemos.
Até semana que vem.
Paula Saab é mastologista pelo Hospital Sírio Libanês, especialista em Gestão de Atenção a Saúde pela Fundação Dom Cabral e Judge Business School (Universidade de Cambridge), membro titular da Sociedade Brasileira de Mastologia e articulista colaboradora do Hora News.
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