O absurdo nosso de cada dia

Sou professor da rede pública estadual e em novembro do ano passado quando estava ministrando uma aula de filosofia política em uma turma de alunos da segunda série do ensino médio ao falar do estado totalitário e mencionar o nazismo presenciei dois alunos levantando o braço e fazendo uma saudação nazista. Imediatamente parei e olhei para os dois. Ambos começaram a rir. Disse a eles e ao resto da turma que apologia ao nazismo é crime (aqui também) e na Europa, por exemplo, em muitos lugares eles seriam presos para esclarecimentos e contextualizei as razões para isso naquele continente e aqui também. 

Principalmente depois de 2013, temos presenciado uma abertura de espaço além do razoável para discursos de ódio. Aqui é importante esclarecer que uma opinião que prega a perseguição e extinção de grupos humanos não é uma mera opinião e por configurar endosso a crime deve ser coibida e limitada de pronto. Dito isso, o espaço que o CQC, o Pânico na TV, o SUPERPOP, entre outros programas (de rádio também) deram a figuras como Bolsonaro possibilitou a banalização de coisas como essas. Muito embora essas ideias não tenham nascido com ele, não se esgotem nele e não vão se esgotar com uma derrota eleitoral dele, suas aparições nesses programas autorizaram quem tinha simpatia por tais ideias a falar delas, desde o teu avô que acha ser errado um relacionamento homoafetivo ao pastor que tem um programa e diz que homossexualidade é coisa do demônio até os educadores que acham que há professores que ensinam criancinhas a serem gays ou lésbicas.

Na maior manifestação de 2013 em Aracaju num determinado momento ouvi gritos de “sem partido”. Até me arrepiei quando ouvi aquilo, nesse momento olhei para um amigo que é filho de político inclusive e perguntei o que era aquilo. Rapidamente eu olhei ao meu redor e respondi para mim mesmo: não estamos nos países nórdicos, mas sei que para uma democracia representativa burguesa funcionar precisamos de partidos e eleições. Naquele momento eu ainda era um estudante de graduação e estava numa pesquisa sobre partidos políticos. Fui a todos os diretórios estaduais que Sergipe tinha até então. Não tinha, como não tenho, nenhuma ilusão sobre a inconsistência de reivindicar não ter pessoas com vínculos partidários nessas manifestações. Cresci acompanhando showmícios e manifestações políticas financiados desde o transporte até a efetivação de tais ações. O que o pós-2013 revelou foi como a direita brasileira cansada aprendeu a utilizar as redes sociais e a juventude para defender suas pautas. O sem partido, mesmo não tendo sido gritado, foi alegado inicialmente nos movimentos pelo impedimento da presidenta Dilma.

Vendo tudo isso e começando a ouvir falar em nomes como o de Olavo de Carvalho e movimentos como o Cansei, o Brasil Livre e o MBL, enquanto estudando de ciências sociais e alguém organicamente posicionado sobre política desde que me entendo por gente eu já conclui que é impossível agir sem se posicionar ideologicamente e que isso redunda na impossibilidade de haver neutralidade em nossas ações sociais. Assim sendo, eu sabia que comunismo e nazismo não eram iguais, a não ser que se identifique os totalitarismos stalinista e nazista com a teoria socialista, que é notória a partir de Marx e Engels, mas é tributária de idéias Iluministas também, assim como das contribuições posteriores desses autores. Além disso, o socialismo científico não lida com espaço vital, extermínio de opositores ou superioridade de uma população sobre outra.

Se como disse Umberto Eco, “a internet deu voz a uma legião de imbecis”, o episódio com Monark e Kim Kataguiri, as postagens do próprio Bolsonaro e de seus filhos, etc. representam muito bem a reprodução dessa voz, mas opinião não exclui responsabilidade. Millor já dizia que “quem confunde liberdade de expressão com liberdade de pensamento, nunca pensou em nada”, então, como eu disse aos meus alunos no episódio em sala de aula, você pode ter uma opinião preconceituosa sobre determinado grupo humano, mas a expressão dessa opinião não está isenta de responsabilização legal. Nesse mesmo sentido eu lembrei que uma campanha do Boticário que defende todas as formas de família e de orientação sexual não é comunista, mas mira comercialmente diferentes públicos consumidores com esse contributo que, embora respeitoso à diversidade, tem objetivos capitalistas. A cara que as direitas (da pior à menos pior) conseguiram foi Bolsonaro.

Com tantos pdfs, videoaulas e rádios e ainda programas de TV disponíveis na internet ainda continua sendo salutar consultar o jornalismo profissional (sempre buscando em várias fontes e em páginas oficiais ligadas às notícias em questão). Ainda temos livros e ler ainda não é crime, embora haja quem dê a entender que isso seria bom. Não me atrevo, por honestidade e por falta de preparo, a dar opinião nos aspectos técnicos do trabalho de um médico, mas estou certo de que médicos também não deveriam achar que sabem de tudo apenas por uma questão de prestígio social, já que a sociologia e o ensino além da linha de tiro da valorização profissional agora sofre ataque ideológico.

Encerrei a minha fala com os alunos dizendo que um idiota pode ser idiota, mas ele permanece limitado pela lei ao expressar suas opiniões. Tomemos cuidado com os especialistas em senso comum e com quem pretende parecer isento esquecendo que viver é se posicionar. Se algumas pessoas se posicionam com palavras que incitam à repulsa a grupos humanos, que nós educadores usemos nossas palavras para promover o conhecimento, a pluralidade e a diversidade em vez de preterir o fato diante da versão. 


Francisco Emanuel Silva Meneses Alves é cientista social, analista político, professor e membro da Academia Capelense de Letras e Artes.

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