Vivemos tempos em que as diferenças e as diversas formas de imposição de poder se tornaram extremadas. Fomos “bombardeados” pelo caso da influencer Mariana Ferrer, vítima de violência sexual, ocorrida duas vezes: a primeira, em 16 de dezembro de 2018 e cometida pelo réu André de Camargo Aranha, indiciado pela Polícia Civil, em 2019, por estupro de vulnerável. Os exames comprovaram conjunção carnal e ruptura do hímen, provando que Mariana era virgem. A segunda violência aconteceu no julgamento realizado por videoconferência. Mas a violência não foi somente sexual. Já no início do julgamento, imagens divulgadas mostram que a vítima não teve o acompanhamento devido do Ministério Público, chegando a relatar que a defensora pública não respondia a seus e-mails e ligações e que precisou de um defensor – que assumiu o caso somente para a audiência. Desde o início, temos quatro homens extremamente informados sobre legislação e suas nuances, e uma mulher tentando se defender e seguir a legislação, sem uma defesa adequada, sem acesso adequado ao defensor, para responder de forma orientada. Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do réu, tenta desqualificar a vítima em uma atitude infeliz de uma herança patriarcal de dominância machista e desqualificadora da mulher, retirando o papel de sujeito de Mariana, para colocá-la como objeto. Importante ainda ressaltar que violência sexual não é somente o crime de violação do corpo, mas de qualquer ato ou ação que viole ou atinja a sexualidade como um todo, de forma ampliada.
Este não é somente mais um caso de estupro. É um caso exemplar do modelo de funcionamento de uma sociedade que retira o direito de ser mulher em sua subjetividade, intimidade e destrói sua identidade em prol da preponderância do homem que entendo vir, principalmente, do Complexo de Castração, definido por Freud como um medo inconsciente de perda da virilidade masculina, representada sobretudo pelo órgão sexual.
Recorrendo ao Prof. Leandro Ayres França, que explica a absolvição do André Camargo Aranha do crime de estupro de vulnerável, no seu canal “ciências criminais”, no Instagram, segundo o parágrafo 1º do artigo 217, do Código Penal brasileiro, que prevê a condenação caso não tivesse discernimento e/ou consentimento da vítima. Não ficou demonstrada embriaguez ou uso de substância pelos exames realizados. Com a falta de elementos, o representante do Ministério Público não tem como usar essa informação como prova. O prof. Leandro continua afirmando que não existe forma culposa no ordenamento jurídico para crime de estupro. Isso não significa que não houve violência sexual contra Mariana, mas, sim, que não foi possível provar nas alegações finais que Mariana Ferrer não tinha discernimento, não caracterizando estupro de vulnerável. Assim, o representante do Ministério Público pediu a absolvição nos trâmites finais do processo penal, alegando que Mariana não estava em condições de vulnerabilidade para caracterizar o crime, e o juiz não poderia inovar em outro sentido. Leandro enfatiza que está errada a informação do site The Intercept Brasil sobre o termo “estupro culposo” e continua deixando muito claro que o réu não foi considerado inocente. Ele foi absolvido, apenas por falta de provas.
Tamanha é a agressão sofrida por Mariana Ferrer diante de um Judiciário despreparado para defender mulheres, LGBTQIA+, negros e tantas pessoas que têm o preconceito arraigado no inconsciente coletivo/social, que o que deveria ser considerado fora da regra e assustador é a rotina das instituições.
Mulheres agredidas não têm o suporte necessário quando chegam para denunciar seus agressores. Os profissionais não estão preparados: primeira agressão. O exame de corpo de delito é um exame invasivo em um corpo traumatizado muito recentemente e que será novamente ferido para “provar que foi lesado”: segunda agressão. Depois, a vítima precisa encontrar um local para se abrigar e se proteger, porque o Estado não consegue abrigar e dar proteção a essa mulher, podendo o agressor, a qualquer tempo, voltar a agredi-la, principalmente se ela não tiver condições socioeconômicas para sair de casa (em outras situações diferentes do caso Mariana): terceira agressão. Por fim, ela precisa provar que foi agredida e, muitas vezes, a punição é desproporcional à lesão física e mental, podendo ser paga em cestas básicas ou trabalho voluntário, dependendo dos advogados: quarta agressão. Tudo isso dá espaço para a repetição de movimentos agressivos do agente agressor, por falta de uma medida corretiva adequada e educativa.
Temos muito ainda por fazer para transformar nossa sociedade em uma sociedade justa para todos. A saúde mental da Mariana Ferrer foi totalmente comprometida; ela não possui um defensor em quem possa confiar, tendo como pilar de força somente a sua mãe, que também é uma mulher e, portanto, sofre com a mesma discriminação e desqualificação de força de voz e fala de uma população que é silenciada.
Se saio com alguém e no meio do caminho mudo de ideia e digo “não”, é não! Não dá direito a ninguém insistir, porque em algum momento houve um desejo que se extinguiu. Se estou em uma festa de vestido, não dou o direito de ninguém passar a mão em nenhuma parte do meu corpo. Isso não é provocação. Isso não é sedução direta e provocativa. Somente os narcisistas – que acham que o mundo gira ao redor deles – pensam que as pessoas agem pensando neles. Para esses, é passível de se pensar em um processo de tratamento, uma vez que cuidar-se e vestir-se bem, para estar se sentindo bem consigo, faz parte da saúde mental de cada um. Não dá direito a ninguém de usar o outro como objeto, principalmente se houver uso de drogas, provado ou não, pelos exames.
Petruska Passos é psicóloga, psicanalista e colunista do Hora News e escreve semanalmente artigos sobre Comportamento e Saúde.
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