Saúde nas Entrelinhas – Um artigo brasileiro publicado recentemente na Revista de Saúde Pública chamou a atenção da mídia e fez de junho, um “Outubro Rosa“ adiantado. Sempre quando colocamos em pauta o diagnóstico do câncer de mama, as mulheres respondem de maneira positiva no sentido de olhar e tocar as mamas, e também fazer seus exames.
Notoriamente, a mamografia tem sido alvo de inúmeros questionamentos desde sua implantação. É um equipamento de teoria simples que se tornou complexo e caro quando agregou tecnologia digital e softwares de leitura avançados.
Inúmeros estudos americanos e europeus já concluíram que programas de rastreamento mamográficos diminuem mortalidade por câncer de mama. Outros, alguns bem polêmicos como o Canadense publicado em 2015, não chegaram a resultados tão animadores e descrevem que em nível de rastreamento populacional a mamografia pode até levar a diagnósticos de tumores que nunca iriam se manifestar fazendo com que a paciente se submeta a tratamentos excessivos. Ninguém nunca descobriu como diferenciar o tumor que vai evoluir do que não vai, o que dificulta usar esse argumento contra a mamografia.
Rastreamento x Diagnóstico
Espero que auditores de planos de saúde leiam pelo menos esse parágrafo do texto para entender que as vezes solicitamos mamografia para pacientes abaixo de 40 anos. A mamografia possui duas indicações em mulheres:
Rastreamento – Realizar o exame em mulheres que não possuem sintomas para procurar imagens suspeitas. O Rastreamento no Brasil possui duas diretrizes, a primeira publicada pela Sociedade Brasileira de Mastologia/Colégio Brasileiro de Radiologia/Federação de Ginecologia e Obstetrícia que recomenda que mulheres a partir dos 40 anos façam mamografia anualmente até quando tiver saúde para continuar realizando. O Ministério da Saúde (leia-se SUS) recomenda que mulheres a partir dos 50 até os 69 anos faça o exame a cada dois anos.
Diagnóstico – Pacientes com sintomas clínicos que são submetidas ao exame para auxílio na identificação e diagnóstico da alteração que ela apresenta. Para mamografia diagnóstica não há recomendação de idade, podendo ser feita quando indicada pelo médico assistente
Programa de Rastreamento
Define-se como programa de Rastreamento uma política de saúde onde há controle populacional e gerenciamento de dados. Não temos isso. Possuímos mamógrafos mal distribuídos e uma grande população sem acesso a eles. Não temos controle de resultados nem gerenciamento de pacientes na linha de cuidado. A cobertura mamográfica no Brasil como um todo, na melhor das estimativas, gira em torno de 24 % no SUS. Traduzindo, de cada 100 mulheres que deveriam fazer mamografia de rastreamento, 24 fazem. Há redução de mortalidade nesse cenário? Não sabemos, mas é bem provável que não.
A Polêmica
O Estudo publicado mostrou que a pandemia de Covid-19 levou a diminuição do que já era pequeno. Comparou exames realizados em 2019 e 2020 em números absolutos e encontrou uma diminuição de 42%. Em 2019 foram realizadas 1.939.415 mamografias para 20.636.636 mulheres em idade de fazer o exame (9,44% de cobertura) contra 1.126.688 exames realizados em um contingente de 21.140.958 mulheres que deveriam realiza-la (5,33%) em 2020. O estudo considerou a capacidade de detecção de tumores iniciais por número de mamografias realizadas baseada em publicações internacionais que utilizam mamografia digital no rastreamento. No cenário ideal, a cada 1000 mamografias digitais realizadas, identificamos 5 mulheres com lesões suspeitas confirmadas por biópsias. Considerando que deixamos de fazer 800.000 mamografias em 2020, uma simples regra de três presumiu que deixamos de diagnosticar 4000 mulheres com câncer de mama.
Primeiro ponto – Não temos nada do ideal. Mamógrafo digital no SUS é raridade. A grande maioria tem imagem digitalizada (o que é muito diferente de ser digital) e ainda temos mamógrafos analógicos. Não possuímos um programa de qualidade obrigatório para garantir o mínimo no complexo processo da análise da mamografia. Não sabemos se no Brasil realizar mamografia reduz mortalidade como em outros países, visto que possuímos tão baixa de cobertura e sem controle de qualidade do exame.
Segundo ponto – Mamografia não dá diagnóstico, sugere lesão suspeita. O que dá diagnóstico é biópsia. Não adianta fazer mamografia, diagnosticar uma lesão pequena suspeita e não ter como biopsiar essa paciente. A biópsia é o grande gargalo da linha de cuidado do câncer de mama no Brasil podendo levar até 185 dias para ser realizada depois da paciente ter uma lesão suspeita identificada segundo o próprio estudo em questão. Vemos diariamente pacientes com nódulos palpáveis, suspeitos, demorando meses para conseguirem ser adequadamente biopsiadas para dar início ao tratamento.
Resumo da Ópera
Mamografia é importante? Sem dúvida! Deve ser realizada? Absolutamente sim! Mas ela sozinha não consegue fazer nada. Que essa polêmica abra os olhos dos gestores de saúde que precisam assumir que existe uma linha de fluxos e encaminhamentos que precisam estar muito bem estruturadas para que todas as pacientes com lesões suspeitas, palpáveis ou não, consigam ser biopsiadas e tratadas o mais rápido possível. Isso sim diminui mortalidade.
Até semana que vem.
Paula Saab é mastologista pelo Hospital Sírio Libanês, especialista em Gestão de Atenção a Saúde pela Fundação Dom Cabral e Judge Business School (Universidade de Cambridge), membro titular da Sociedade Brasileira de Mastologia e articulista colaboradora do Hora News.
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