Os acontecimentos históricos, que são matéria-prima para a produção do conhecimento jornalístico, sempre suscitam entre nós, pesquisadoras e pesquisadores em jornalismo, possibilidades de reflexões verticais, que nos conectam com diferentes públicos, para além das fronteiras do ambiente acadêmico e dos observatórios de mídia.
Estamos vivendo um desses momentos, que remetem ao ano de 2016: no caso brasileiro, o debate sobre o papel da mídia hegemônica no golpe de Estado – de novo tipo – que interrompeu o governo da presidenta Dilma Rousseff; no caso da imprensa mundial, a associação criminosa da plataforma digital Facebook (hoje Meta) com a empresa Cambridge Analytica, que levou à vitória dos que defendiam a saída do Reino Unido (UK) da União Europeia, no plebiscito conhecido como “Brexit”. Este último, é tratado pela literatura como uma espécie de “laboratório” cujo método – traçar perfis psicográficos de pessoas “persuasíveis” – foi usado para eleger Donald J. Trump à Casa Branca.
Lá se vão mais de seis anos da eleição da extrema-direita ao poder no Brasil, e as lições que a imprensa – como instituição – deveria ter incorporado aos seus saberes e fazeres, na função altamente relevante de produzir notícias e ser uma fonte de referência ao debate público, não se fazem notar. O caso de Pablo Marçal, candidato de extrema-direita às eleições para a prefeitura de São Paulo, a maior metrópole da América Latina com seus mais de 11 milhões de habitantes, desafia outra vez os agentes da imprensa mainstream (Folha, Globo, Estadão, UOL et caterva), que juram “defender a democracia”.
Supostas notícias
A forma torpe como o Marçal hegemonizou o debate e sequestrou as atenções foi, aos poucos, sendo naturalizada pela mídia tradicional. O jornalista Reinaldo Azevedo é uma dessas vozes dissonantes que nos alertava, há tempos, sobre esse desatino. Agora o colunista do Portal UOL retoma a crítica após o último episódio que envolveu um crime eleitoral de Marçal contra Guilherme Boulos, a quem acusava de usar cocaína com base num laudo falso, assinado por um médico falecido há mais de dois anos. Escreveu Azevedo:
“Há tempos dirigi um questionamento ao próprio jornalismo e às empresas de comunicação. Como faço parte da comunidade, empregarei o pronome “nós”, destacando, não obstante, que me insurgi contra a presença deste senhor nos debates desde sempre. Em ao menos duas oportunidades, ele próprio admitiu a atuação farsesca. Numa entrevista ao podcast Flow, afirmou que, deliberadamente, fazia coisas idiotas porque era disso que os brasileiros gostavam. Num vídeo, confessou que a cena da ambulância, em que simulava passar mal em razão da cadeirada, era uma armação”.
A questão de fundo parecer ser: como a imprensa deve cobrir esse tipo de agente político que atua, intensamente e em tempo real, para destruir as instituições democráticas, incluindo o próprio Jornalismo?
Para o jornalista André Graziano (do Portal ICL Notícias), “Em nome de uma isenção hipócrita, o jornalismo é usado como cúmplice de um ato criminoso (e, aqui, dou o benefício da dúvida, atribuindo mais culpa do que dolo). Títulos davam um tom (“Marçal divulga suposto laudo que aponta uso de cocaína por Boulos”), enquanto as próprias matérias demonstram as fragilidades da falsificação”.
Ora, de maneira geral, desde o começo da campanha, a imprensa hegemônica deu palco e microfone às bizarrices proferidas pelo candidato de extrema-direita. O tratamento ao caso é paradoxal, na visão de Graziano:
“A suposta notícia, dessa maneira, presta um desserviço. As fragilidades que apontam para uma falsificação é que deveriam dar o tom das chamadas, já que a maior parte dos leitores não passa do título ou da manchete. E a imprensa já tinha tais fragilidades em mãos, tanto que apareciam no meio do texto!”
A deterioração do debate público
O jornalista Eduardo Graça (O Globo), faz interessante análise – entre os cenários vividos no Brasil e nos EUA, em processo eleitoral para presidente e Congresso – e aponta um limite político à ação da imprensa como mediadora do debate.
“No Brasil, cadeirada, soco na cara, laudo médico falso, cabeçada e ataques abaixo da cintura, com acusações pesadas e inverídicas sobre a vida pessoal dos adversários. Nos Estados Unidos, atentados a tiro, ódio contra minorias, revisionismo histórico barato e bizarrice usada para fortalecer o nativismo xenófobo, também registrado em pleitos na Europa. Investigação, checagem de fatos e o jornalismo profissional, centrais para desnudar mentirosos, muitas vezes, diz, não funcionam como antídoto para personagens que encaram as eleições pela lógica do entretenimento popularesco”.
No final de julho de 2021, publiquei aqui no objETHOS um texto cujo título indagava: Jornalismo e Ativismo: ainda cabe falar em “objetividade”, “neutralidade” e “imparcialidade”?
O texto faz referência à edição do telejornal de maior audiência do país (Jornal Nacional, Grupo Globo), no momento em que a tragédia humanitária provocada pela pandemia da Covid-19 chegava à marca de meio milhão de vítimas, no país. Os apresentadores registraram, em editorial, ao final daquela edição do JN, uma posição que apontava para nova perspectiva de enquadramento. Ao concluir o texto, que fazia duras críticas ao governo Bolsonaro, o apresentador William Bonner afirmou:
“Tudo tem vários ângulos e todos devem ser sempre acolhidos pra discussão, mas há exceções. Quando estão em perigo coisas tão importantes como o direito à saúde, por exemplo, ou o direito de viver numa democracia, em casos assim não há dois lados. E é esse o Norte que o jornalismo da Globo continuará a seguir”.
Os episódios que envolvem a performance do agente de extrema-direita, nas eleições à prefeitura de São Paulo (SP), revelam que as lições não foram apreendidas, tanto pelo Grupo Globo, como pelas organizações que compõe o monopólio de mídia privada no país. Ou como constata Reinaldo Azevedo:
“Marçal não é o primeiro. Antes dele, houve Bolsonaro. Também não será o último. Se as redes precisam ser reguladas para combater verdadeiras organizações criminosas que operam no espaço virtual, entendo que o jornalismo deve tomar cuidado para que a atividade não se torne caixa de ressonância daqueles que, triunfando, destruirão o regime de liberdades em que existimos — jornalistas e não jornalistas. Ajudamos a dar corpo a um farsante perigoso. Foi um erro. E sei que vamos repeti-lo muitas vezes. Até quando?”
É verdade que os portais online e empresas hegemônicas mudaram o tom da cobertura, no que se refere ao crime eleitoral praticado por Pablo Marçal no sábado anterior às eleições (6 de outubro). Entretanto, o impacto primeiro é o que fica. Ou na feliz expressão do jornalista André Graziano:
“No dia seguinte, o tom da cobertura mudou. Veículos de imprensa passaram a trazer já no título que o documento era uma falsificação grosseira. O problema é que o dia seguinte quase sempre é tarde demais” (grifos nossos).
Dito de outro modo, a correção de uma notícia tem sempre menor impacto que o enunciado original.
Samuel Pantoja Lima é jornalista, pesquisador e docente do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC.
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