João Alves e o sonho de uma Shangri-lá entre o Real e o São Francisco

Nenhum homem está à altura de sua obra, seja esta material ou imaterial. Mas não é menos verdadeiro que o valor transcendente de uma obra costuma eternizar seu autor, resgatando a memória, a justiça e o respeito quase sempre sonegados em vida.

Em todos os campos da atividade humana, temos exemplos de singulares expoentes em cujo legado reconhecemos a indelével marca da genialidade, do heroísmo, do visionarismo.

Homem de vanguarda, o ex-governador João Alves Filho, falecido nesta quarta-feira, 25, distinguia-se por essa capacidade de enxergar entre as brumas do tempo muito além do que é dado ao comum dos mortais. Em seu horizonte de menino humilde que se fez líder de um povo, descortinava-se uma terra desenvolvida, próspera, com gente feliz e saudável, mesas fartas e sorrisos largos.

João não media esforços em sua missão de edificar uma Shangri-lá entre os rios Real e São Francisco. Estudava, trabalhava, projetava, corria o mundo em busca de inspiração e recursos. Topava com muitas dificuldades, algumas inamovíveis. E como o solitário profeta da música Canção Agalopada, do paraibano Zé Ramalho, em alguns momentos devia dizer de si para consigo: “Pode ser que ninguém me compreenda, quando digo que sou visionário, pode a Bíblia ser um dicionário, pode tudo ser uma refazenda”.

É indubitável que João não foi devidamente compreendido. Seus ousados projetos para desenvolver a economia sergipana e reduzir a pobreza nas regiões e municípios mais carentes eram frequentemente rotulados de faraônicos, elefantes brancos, delírios de um megalômano. Mas João venceu os céticos e detratores: a orla marítima e as rodovias litorâneas impulsionaram o turismo, os perímetros irrigados cobriram de verde o sertão e o agreste, o platô de Neópolis gerou milhares de empregos diretos e indiretos, as adutoras levaram água de qualidade para milhares de famílias, a ponte Aracaju-Barra trouxe perspectiva de desenvolvimento a municípios outrora isolados.

Entristece-me, portanto, não só a notícia do passamento do maior homem público da história de Sergipe, mas o fato de não podermos, em razão das circunstâncias, prestar-lhe as devidas homenagens. Mas o que são nossos humanos desejos diante dos desígnios de Deus?

Assim, despeço-me do construtor de Sergipe dedicando-lhe o poema “Apelo a Meus Desemelhantes em Favor da Paz”, de Carlos Drummond de Andrade, cujo trecho final reproduzo não à guisa de epitáfio, mas como posfácio de uma vida digna de aplausos:

“Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira
a paz de cima das Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada
de Morro Velho
a paz
da
paz”

Paulo Márcio é delegado de polícia, ex-presidente da Adepol e articulista do Hora News.

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