Saúde nas Entrelinhas – Quando li Sapiens do escritor Youval Harari pela primeira vez, fiquei absorta com a provocação de como eu nunca tinha analisado a construção social dos relacionamentos humanos sob aquela perspectiva. Quando li Homo Deus, fiquei chocada com as previsões futuras que ele faz do que será nossa sociedade em uma junção literalmente física da biologia e da tecnologia. Em um novo cenário pandêmico de um patógeno que conhecemos cada vez menos o futuro se desenha mais sombrio e desorganizado do que jamais poderíamos prever.
Invenção ou Realidade
Sob a ótica de Harari, a principal diferença entre os humanos e as demais espécies de animais é a nossa capacidade de criar histórias, de desenhar um core social baseado em fatos irreais e realmente acreditar nisso. Um exemplo simples é o dinheiro. Dinheiro não é real, mas se torna real somente porque toda a sociedade acredita nessa história. Imagine um cenário caótico com desorganização total do sistema onde o dinheiro não consiga mais comprar insumos básicos dentro desta ilusão coletiva. A moeda vira água, vira comida e vira abrigo, isso sim realidade e não história dentro das nossas vidas. Estamos vendo pessoas endinheiradas morrendo a espera de um leito de UTI ou morrendo nas melhores UTIs. A vida é real, o dinheiro não.
A Ciência
No caos que vivemos desde o começo de 2020, a humanidade se destacou na ciência. Ela rompeu barreiras e invadiu nações que em um esforço colaborativo fez com que todos trabalhassem em prol de um único objetivo: vencer o vírus. Nações, países, fronteiras – todas histórias criadas pela mente humana nesse desenrolar sócio-biológico, unidas com um objetivo comum. A única realidade na última frase é o vírus. Aprendemos muito sobre seu comportamento biológico e quando achamos que sabemos alguma coisa, algo acontece e vemos que não sabemos nada ainda. Mesmo assim, sabemos manejar melhor os parâmetros ventilatórios da Sars-Cov, sabemos que corticoide e anticoagulantes podem ter seu papel no tratamento e pela primeira vez na história da humanidade conseguimos que a indústria farmacêutica desenvolvesse vacinas em menos de 1 ano. A vacina é realidade, a indústria farmacêutica é invenção. Empresas são histórias, mas ciência é realidade.
A Política
Se a ciência está brilhando atrás de respostas, o sistema político mundial está em colapso. Também organizado pelas mentes humanas ele não conseguiu reagir na velocidade necessária para acompanhar as consequências da COVID-19. Frequentemente parece que o sistema está parado, escondido embaixo da mesa esperando tudo passar.
A falta de ações para adaptação da rotina a um novo cenário foi abortada antes de nascer. Interesses e visões pessoais – presas a histórias e não a realidade – estão impedindo que ações efetivas sejam tomadas, que mecanismos de funcionamento sejam rediscutidos e inovações implantadas. É o mundo onde já se conhece energia renovável como a solar e a eólica, mas que continua a escavar poços de petróleo independente do seu impacto ambiental porquê a história ficou mais importante que a realidade.
Salvação
A ciência parece ter nos ofertado a real salvação através das inventadas empresas. Ela está aí, a disposição de um sistema político engessado por interesses alternativos em um processo de distribuição que não consigo acompanhar. O interesse real da vacinação é coletivo: bloquear a epidemia. Ela tem que ser rápida, desburocratizada e para todos. Aberrações estratégicas como médicos terem que levar ISS pago para comprovar que são ativos e sites de preenchimento complexo para avaliar eligibilidade são uma afronta a quem estuda epidemiologia. Não adianta vacinar o idoso que fica em casa se não vacinar o jovem que frequenta diversos ambientes e é o principal agente transmissor. Independente de todos os delírios coletivos que construímos e ditam o andar da nossa sociedade, a doença é uma realidade assim como a vacina. Lutemos por ela. Já morreu gente demais.
Até semana que vem.
Paula Saab é mastologista pelo Hospital Sírio Libanês, especialista em Gestão de Atenção a Saúde pela Fundação Dom Cabral e Judge Business School (Universidade de Cambridge), membro titular da Sociedade Brasileira de Mastologia e articulista colaboradora do Hora News.
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