“Eu Tenho Plano”

Saúde nas Entrelinhas – Vivendo a calamidade da Covi-19 nos últimos quase 2 anos, muitos brasileiros acabaram recorrendo aos planos de saúde com pavor de necessitar de suporte intensivo decorrido da pandemia. Nos primeiros meses onde inúmeras empresas tiveram as portas fechadas, cerca de 327 mil pessoas perderam os convênios que estavam atrelados a seus empregos a contratos empresariais.

Com o passar os meses e a situação um pouco mais estabilizada, o movimento mudou de sentido e também segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ao final de 2020 mais de 650 mil pessoas aderiram a planos de saúde com uma alta no lucro líquido das operadoras de saúde de 49,5%, equivalente a R$ 47,6 milhões. No primeiro trimestre de 2021 já houve um aumento de 22% do lucro comparado a 2020. Mesmo nesse cenário positivo, os reajustes permaneceram absurdos, variando de 8,14 % para planos familiares até 30% para planos empresariais.

Muitas famílias atualmente padecem de dificuldades financeiras e descontrole do orçamento mensal para conseguir manter assistência médica privada. Além do aumento anual da mensalidade, foi permitido que o aumento referente ao período que o Governo determinou que os reajustes ficariam bloqueados em 2020 fosse dividido em 12 vezes para ser pago em 2021. É um mecanismo que nitidamente protege os convênios em detrimento de seus usuários.

Expectativa x Realidade

Com um investimento tão alto a expectativa em relação assistência médica em caso de necessidade também é alta, aliás, justa. Imaginamos que em um momento de adoecimento o cuidado para o reestabelecimento da saúde seja certo. Ledo engano. Só em São Paulo, por exemplo, em 2020 a Justiça de primeira e segunda instâncias relatou um aumento de 387% no número de processos contra planos de saúde. Isso sentimos na prática como médicos e pacientes. O relacionamento com algumas operadoras de saúde está ficando dia após dia mais difícil e unilateral. Com grandes lobistas em Brasília jogando a favor das empresas, enquanto entidades médicas adormecem no ostracismo, o “produto” saúde tem sido tratado literalmente como produto, levando milhares de famílias ao desespero nos momentos mais delicados de suas vidas quando precisam e não tem assistência médica adequada.

O Relatório Médico

O Relatório Médico é um documento onde o médico assistente descreve o quadro clínico do paciente, seus exames, seu parecer e sua indicação de tratamento. É complexo e demorado de ser feito, pois envolve todo um levantamento de um prontuário individual, o que torna impossível o modelo de um “Relatório Padrão”. Ele sempre foi solicitado em laudos periciais e compartilhamento de informações entre médicos assistentes.

Atualmente, o Relatório Médico foi banalizado pelos planos de saúde sendo solicitado até para justificar o pedido de exames simples, como uma mamografia. Tornou-se muitas vezes um meio de dificultar o acesso do paciente ao sistema de saúde privado enchendo seu caminho de burocracia e perda de tempo. A falta de entidades de defesa médicas e do consumidor em relação aos planos de saúde têm dado a empresas privadas com fins lucrativos a oportunidade de atuar como soberano sobre indicações e solicitações médicas, de maneira muitas vezes irresponsável e antiética.

O Médico Auditor

Auditoria por definição é a “realização de um exame sistemático das atividades desenvolvidas em determinada empresa ou setor com o objetivo de averiguar se estão de acordo com as disposições planejadas”.

O médico auditor é um médico de qualquer especialidade que realiza um curso de auditoria e a partir daí está apto pela nossa legislação a analisar solicitações de liberação de medicações e procedimentos de qualquer especialidade. Um psiquiatra pode ser quem vai decidir sobre a liberação de uma cirurgia oncológica, um ortopedista pode auditar a solicitação de uma cirurgia cardíaca, por exemplo.

Segundo o artigo 97 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico auditor autorizar, vetar ou modificar procedimentos propedêuticos ou terapêuticos instituídos, salvo em caso de urgência onde o médico assistente deve receber um documento por escrito.

Salvo os bons profissionais que existem em todos os lugares, temos vivido uma epidemia de infrações ao Código de Ética Médica diariamente. Procedimentos são negados e até mudados por um auditor que nunca nem viu o paciente e sem o cuidado de realizar contato médico-médico para uma discussão mais profunda, uma vez que a maioria deles não é especialista na área que está auditando. Alguns convênios, inclusive, negam acesso do médico assistente ao médico auditor, como aconteceu comigo semana passada quando a cirurgia que solicitei foi literalmente trocada por outra pelo auditor de um grande convênio nacional que nem ao nome consegui ter acesso. Inacreditável, mas é a realidade.

Consequências

A consequência desse modelo é dramática. Com foco em lucro, muitos planos, mesmo caros, estão mais interessados em contratar serviços baratos do que serviços de qualidade para oferecer a seus clientes. Pacientes podem ficar meses para conseguir autorizar um exame ou procedimento e os médicos engessados em um sistema que está tirando cada vez mais sua autonomia. Grande parte dos usuários de planos delegam sua saúde às empresas com uma grande ingenuidade acreditando que o alto custo investido para ter um plano de saúde será transformado em um cuidado adequado. Atenção sempre, o único interessado em sua saúde é você mesmo.

Até semana que vem.


Paula Saab é mastologista pelo Hospital Sírio Libanês, especialista em Gestão de Atenção a Saúde pela Fundação Dom Cabral e Judge Business School (Universidade de Cambridge), membro titular da Sociedade Brasileira de Mastologia e articulista colaboradora do Hora News.

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