Eleição unificada é um grande retrocesso social

A saúde pública mundial se encontra em estado de alerta. Os leitos dos hospitais estão completamente lotados. A economia vive dias sombrios e tenebrosos. Empresas fecharam as portas e funcionários foram demitidos. O setor educacional experimenta uma longa, atípica e inesperada paralisação. Os serviços de transporte público foram reduzidos consideravelmente. Viagens, casamentos e aniversários foram reprogramados. O mundo está experimentando um cenário caótico e devastador, nunca antes imaginado.

Que a pandemia do COVID-19 tem trazido uma série de consequências danosas a todos os setores da sociedade mundial já não é nenhuma novidade. Entretanto, o que pouco tem se discutido é sobre os desdobramentos que estão emergindo desse preocupante quadro, notadamente no que diz respeito às Eleições Municipais 2020 e à tendência um tanto quanto audaciosa de unificar o pleito geral e municipal em um único dia ou em datas bastante próximas, havendo, inclusive, quem defenda a prorrogação dos mandatos atuais de prefeitos e vereadores para o ano de 2022, sob o encantador argumento de que a situação emergencial vivenciada reclama do Estado uma atuação também de emergência. Noutros dizeres, retoma-se o velho e conhecido manto do “algo precisa ser feito”, podendo os fins legitimar os meios.

Essa justificativa, numa primeira análise, apresenta-se de forma bastante convincente, se desconsiderarmos os liceus do grande jurista italiano Sergio Moccia, que, ao quadrar e destrinchar a expressão “Direito Penal de Emergência”, asseverou que jamais uma situação de crise poderá ser combatida através da violação ou mitigação de direitos e garantias fundamentais. É preciso, antes de se emocionar com os discursos aparentemente inofensivos e politicamente corretos, analisar o efeito que a medida drástica poderá ocasionar à toda sociedade, sob pena de gerar precedentes altamente dolorosos.

Não podemos perder de vista que no Brasil nada acontece por acaso. Por isso, vale retornar um pouco no tempo e rememorar a recente violação do Princípio da Presunção de Inocência, insculpido no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, onde o próprio Supremo Tribunal Federal – em que pese seja o guardião da mesma –, ao apreciar o Habeas Corpus nº 126.292/SP, atendendo a clamores públicos e a pretexto de combater a gritante corrupção e criminalidade que assolam o país – em pleno auge da Operação Lava Jato, mediante um “triplo twist carpado hermenêutico”, feriu de morte a Bíblia Política para autorizar a execução provisória da pena após a condenação em segundo grau, embora ainda fosse possível recorrer. Posteriormente, no ano de 2019, ao analisar as ADC’s nº 43, 44 e 54, voltou atrás no referido entendimento, afirmando que o cumprimento da pena somente pode ter início com o esgotamento de todos os recursos cabíveis, ou seja, com o trânsito em julgado da decisão condenatória, assim como prevê a Lei Maior Brasileira.

Feita tal digressão, é imperioso relacionar o que aconteceu em 2016 com aquilo que vem se desenhando no contexto eleitoral contemporâneo. A intenção de uma parcela da classe política e social em unificar as eleições gerais e municipais como resposta à situação emergencial da pandemia do COVID-19, se validada pelo Congresso Nacional, gerará um inequívoco retrocesso social, na medida em que os interesses locais dos municípios serão sobrepostos e sufocados pela poderosa campanha presidencial e estadual, as quais, inegavelmente, despertam maior interesse na sociedade e nos meios de comunicação.

Outrossim, a realização de eleições unificadas inviabilizaria completamente os trabalhos operacionais e judiciais da Justiça Eleitoral, seja pela necessidade de contínuo avanço e aprimoramento técnico e estrutural, levando-se em consideração a quantidade elevada de municípios e estados brasileiros, seja pelo dinamismo e celeridade que o período eleitoral exige para a fiscalização e apreciação dos pedidos de registros de candidaturas, prestação de contas, ações de impugnação, ações judiciais eleitorais, representações eleitorais contra propagandas eleitorais irregulares, entre outras fases.

Sob outro prisma, a unificação do pleito ocasionaria um maior distanciamento social da política, na medida em que a população somente seria convocada a repensar os modelos atuais de gestão a cada quatro ou cinco anos, como prevê a proposta, colocando em stand-by a necessidade de oxigenação das eleições e dos ideários democráticos-constitucionais derivados do Princípio Republicano. Ademais, a própria compreensão, por parte do eleitor, de todas as propostas e planos de governos lançados mão pelos candidatos restaria prejudicada, face a quantidade elevada de candidatos.

Diante desse resumido panorama, urge questionar: a quem interessa a unificação das eleições?

Sem o intuito de esvaziar o tema, tampouco de embargar eventuais opiniões em sentido contrário, entendemos que a implantação do modelo unificado de eleições no Brasil desembocaria em um grande retrocesso social, na medida em que mitigaria a periodicidade do voto, enquanto direito fundamental erigido ao patamar de cláusula pétrea na Constituição Cidadã, levando-se ainda em consideração as dificuldades de operacionalização do processo eleitoral, aliado ao esmagamento das questões municipais pelas pautas de cunho nacional e/ou estadual, distanciando ainda a sociedade dos assuntos políticos da nação.

Reputamos não ser tolerável, por mais uma vez, que se dê azo à oportunismos políticos ou clamores públicos, principalmente se observarmos – guardadas as devidas proporções – os péssimos precedentes na história global, afinal, foi a opinião pública quem condenou Jesus à morte na cruz e libertou Barrabás; quem legitimou o Apartheid na África e o Nazismo na Alemanha.

Por fim, nada obstante os constantes ataques que sofre o modelo democrático brasileiro, posto em xeque e reputado como falido, é importante recobrar à memória o alerta do notável Otávio Mangabeira, ex-governador do estado da Bahia, segundo o qual “para os males da democracia, mais democracia”.

Sigamos, amigos!!


Osmário Araújo Filho é professor e advogado especialista em Direito Eleitoral pela PUC/MG.

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