Em 2018, Sergipe registrou 984 homicídios dolosos. Houve uma redução em relação aos índices registrados nos dois anos anteriores, mesmo assim nos mantivemos entre os estados mais violentos do país, com uma taxa superior a 40 homicídios por grupo de 100 mil habitantes.
Apesar dos números alarmantes, não são poucas as pessoas que afirmam não enxergar ou sentir tamanha violência. Muitas delas dizem sentir-se mais seguras em Sergipe do que em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, ainda que as estatísticas oficiais não endossem tal sentimento.
Mas há uma explicação de fundo sociológico para essa percepção aparentemente apartada da realidade. A maioria esmagadora das vítimas de homicídio é constituída por jovens moradores da periferia, com baixo nível de escolaridade, envolvimento com o tráfico e passagem pelo sistema prisional. Aliás, a condição de ex-presidiário é quase sempre a primeira informação a vir à tona quando o cadáver de mais um jovem negro é acrescido à fria e cruel estatística. Uma desculpa para o Estado, um alívio para o cidadão “de bem”.
Esse aparente estado de normalidade experimentado por quem vive em estado alterado de consciência, a despeito do genocídio em curso nas regiões periféricas, decorre justamente da barreira invisível entre as duas realidades socioeconômicas coexistentes no mesmo espaço urbano. Se a violência sequer é percebida por quem mora em um dos lados do muro, como esperar que seja sentida?
Essa mesma falta de empatia que se observa em relação à violência letal em Sergipe e nos demais estados da federação vem contaminando (perdão pelo trocadilho) o debate acerca da pandemia de COVID-19 no Brasil.
De acordo com o portal G1, até às 18h45min desta Sexta-Feira Santa (10), o Brasil registrava 1056 mortes por coronavírus, com a confirmação de 115 óbitos somente nas últimas 24 horas. No total, já são 19.638 casos confirmados, o que representa uma taxa de letalidade de 5,4%.
Nem a assombrosa progressão geométrica dos casos de infectados e mortos parece convencer do contrário quem se aferrou à tese de que nossa privilegiada localização entre os trópicos, associada ao uso da hidroxicloroquina em casos moderados e graves, coloca-nos em situação confortável quando comparados aos Estados Unidos, Itália e Espanha.
Como são Tomés da pós-verdade, preferimos sustentar nossas opiniões e crenças contrárias aos pareceres dos maiores especialistas do mundo. E assim vamos sendo empurrados para as valas comuns e crematórios improvisados, como, antes de nós, os italianos, norte-americanos e espanhóis, assim como nós, orgulhosos de sua autodestrutiva estupidez.
Assim como na narrativa bíblica, aqueles que hoje constroem suas arcas preparando-se para o dilúvio são alvo de chacota e zombaria. E se amanhã o Sol não aparecer?
Paulo Márcio é delegado de Polícia Civil em Sergipe e ex-presidente da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol).
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