Incidência de imposto de renda sobre a Retae no âmbito das polícias Civil e Militar

A lei 7870/14 foi um divisor de águas no sistema remuneratório das carreiras integrantes da Polícia Civil de Sergipe. Fruto de uma negociação entre a Associação dos Delegados de Polícia Civil de Sergipe (Adepol) e o governo, o citado diploma implementou a remuneração em parcela única, também conhecida como subsídio, incorporando ao vencimento básico e, via de consequência, extinguindo as demais verbas remuneratórias, nomeadamente a gratificação por curso (prevista na lei estadual 6.545/2008), a gratificação por periculosidade, o adicional de triênio e o adicional de terço.

Seguindo o entendimento jurisprudencial até então majoritário, segundo o qual não era permitido o pagamento de horas e adicional noturno aos servidores remunerados por meio de subsídio, a lei em questão vedou expressamente o pagamento de tais verbas:

“Fica expressamente vedado o pagamento de horas extras e adicional noturno aos membros da carreira de Delegado de Polícia Civil (Art. 4°, Parágrafo Único, da lei 7870/14)”.

Ocorre que a Polícia Civil desenvolve atividades fora do horário de expediente, sobretudo nas unidades plantonistas da capital e interior, não sendo lícito ao Estado empregar servidores em tais atividades sem a devida contraprestação financeira. 

Assim, ante a impossibilidade de pagamento de horas extras e adicional noturno, de um lado, e a proibição de locupletamento ilícito do estado, por outro, chegou-se a um meio termo: a criação de uma verba de natureza indenizatória, não incorporável, destinada ao pagamento dos servidores voluntária ou compulsoriamente designados para atividades extraordinárias de plantão – RETAE.

“Art. 5º A retribuição financeira transitória pelo exercício eventual de atividade de plantão não pode ser incorporada à remuneração e nem aos proventos dos membros da carreira de Delegado de Polícia Civil, constituindo, pois, parcela indenizatória decorrente da natureza do trabalho policial civil, sujeito à necessidade de prestação de serviço em plantões eventuais”. 

Na esteira da lei 7.870/14, foram aprovadas outros diplomas estendendo os mesmos direitos e garantias às carreiras de Escrivão, Agente e Agente Auxiliar de Polícia Civil, direitos e garantias esses mantidos na lei estadual 8272/17. 

Norma semelhante, aprovada pela Assembleia Legislativa em setembro de 2016, também disciplinou a Retae no âmbito da Polícia Militar, igualmente considerando-a uma verba de natureza indenizatória. 

E justamente por se tratar de verba indenizatória, conforme afirma expressamente a lei 7870/14, não é cabível a incidência de imposto de renda sobre a Retae, como, aliás, sobre qualquer verba de idêntica natureza, conforme jurisprudência pacífica dos tribunais:

“IR. NÃO-INCIDÊNCIA. VERBA INDENIZATÓRIA. A Turma reiterou o entendimento de que não incide imposto de renda sobre verbas indenizatórias tais como plano de demissão voluntária, plano de aposentadoria incentivada, abono pecuniário de férias, indenização especial (gratificação); bem como sobre a conversão em pecúnia dos seguintes direitos não gozados: férias (inclusive quando houver demissão sem justa causa), folgas, licença-prêmio e ausências permitidas ao trabalho para tratar de assuntos particulares (APIP). No caso, o Tribunal a quo entendeu que a verba recebida sob a denominação de “indenização especial” não caracterizaria acréscimo patrimonial, uma vez que visava compensar financeiramente o empregado demitido sem justa causa. Para este Superior Tribunal chegar a conclusão diversa, seria necessário revolver o contexto fático-probatório, o que é vedado pela Súm. n. 7-STJ. Precedentes citados: REsp 652.220-SP, DJ 18/4/2005; REsp 669.135-SC, DJ 14/2/2005, e REsp 286.750-SC, DJ 26/5/2003”.

Pois bem, desde sua instituição a Retae vem sendo paga sem nenhum desconto. E não poderia ser diferente. Mais do que isso, a verba tornou-se, para a maioria dos policiais civis e militares, uma verdadeira válvula de escape, pois os salários corroídos por seis anos consecutivos sem reajuste fizeram com que novatos e veteranos trocassem seus finais de semana e feriados por plantões na capital e no interior, uma semiescravidão imposta por contingências que merecem uma abordagem à parte.

Sucede que, já no corrente mês de maio, o Estado procederá ao desconto do imposto de renda sobre a Retae percebida pelos trabalhadores em segurança pública. 

Embora a SSP ainda não tenha confirmado oficialmente a informação, o Comandante-Geral da Polícia Militar, Cel Marcony Cabral Santos, mandou publicar no Boletim Geral Ostensivo n° 093 de 21 de maio de 2019 que, a partir deste mês, por orientação do Parecer 6128/2017-PGE, a Seplag (SEAD) efetuará o desconto em folha.

A notícia caiu com uma bomba no meio policial. Não exatamente pelo mérito ou conteúdo do parecer, que já era de conhecimento geral, mas pela forma açodada como se está procedendo. 

Retirar abruptamente 27,5 % do rendimento extra de um trabalhador que não sabe o que é reajuste salarial há seis anos é como roubar a pouca água e os escassos víveres de quem tenta sobreviver na aridez do deserto.

É o caso, pois, de se indagar: 

a) Se o Estado afirma agora que a Retae, ao contrário do que diz a lei, tem natureza remuneratória, podemos então considerá-la como sucedâneo das horas extras, embora a lei vede expressamente o pagamento de horas extras?

b) Se a Retae não tem natureza indenizatória e nem se confunde com as horas extras, como será feito o cálculo para definir os novos valores por hora de plantão?

c) Segundo a lógica que preside o pagamento das verbas remuneratórias, doravante dividir-se-á o valor do subsídio por 180 horas (jornada mensal) para se encontrar o valor por hora de plantão?

d) Na hipótese de se dividir o valor do subsídio pelo número de horas, haverá diferença na remuneração paga aos membros das diferentes classes, em alguns casos ultrapassando os 100%?

e) Haverá necessidade de alteração legislativa para se mudar a forma de cálculo ou, uma vez reconhecida a natureza remuneratória da Retae, adotar-se-á automaticamente a mesma fórmula utilizada para o cálculo das horas extras vigente no sistema anterior?

f) O Estado entende possível o pagamento de horas extras e adicional noturno para servidor remunerado por meio de subsídio?

g) Sendo afirmativa a resposta, não seria mais prudente, em lugar da Retae, recriar as horas extras e o adicional noturno, em razão da segurança jurídica que a medida representaria para servidores e Administração?

h) Sendo negativa a resposta, isto é, da incompatibilidade entre o subsídio e outras verbas remuneratórias, os servidores policiais correm o risco de ficar sem Retae, assim como já ficaram sem horas extras e adicional noturno.

i) Considerando o novo entendimento firmado pela PGE por meio do Parecer 6128/2017, pode-se dizer que para a Administração não existe diferença entre Retae e hora extra?

Como se vê, tenho mais dúvidas do que convicções. E não seria arrogante, leviano ou inconsequente para afirmar que a PGE incorreu em erro, embora sejamos todos falíveis. 

Minha única preocupação é encontrar uma saída que concilie segurança jurídica e manutenção do valor por hora de plantão extraordinário, sob pena de maior penalização do servidor. 

Se a nova orientação for adotada a ferro e fogo, num primeiro momento o prejuízo será apenas dos servidores policiais que já trabalharam. As consequências, no entanto, são imprevisíveis, daí a necessidade de o governo convocar as entidades representativas das categorias profissionais a fim de se buscar uma saída mais condizente com os princípios democráticos. 


Paulo Márcio Ramos Cruz é Delegado da Polícia Civil de Sergipe, ex-presidente da Adepol/SE e Segundo Vice-Presidente Jurídico da Adepol do Brasil. Atualmente está lotado na Central de Flagrantes de Aracaju.

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