Baiano que desenvolve vacina passou infância vendendo frutas e geladinho

Vê esse homem com cara de professor e cientista? Pois bem. Ele, de fato, é professor e cientista dos bons. Agora, consegue imaginá-lo na infância? É difícil conceber, mas, aos oito anos, Gustavo Cabral trabalhava em uma feira. Vendia manga, coco e geladinho na cidade de Tucano, no nordeste da Bahia, onde nasceu. O máximo que alcançou na área de vendas foram duas bancas de carne, pequenos açougues em outras cidades do interior. Nessa época, não conseguia estudar muito porque tinha que trabalhar.

De olho nas pessoas que conseguiram crescer na vida, Gustavo chegou à conclusão que a maioria delas havia se dedicado aos estudos. Foi quando, aos 15 anos, vendeu os dois açougues para se matricular em uma escola particular. Passou a se dedicar exclusivamente aos estudos. A partir de então foi só meter a cara nos livros, o que lhe credenciou a passar no vestibular do curso de Ciências Biológicas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

De família humilde, a mãe ajudante geral de uma escola e o pai agente de saúde, penúltimo de quatro filhos, Gustavo foi o primeiro da casa a entrar no ensino superior. Passou parte do curso vivendo com R$ 50 que a família enviava, o que não o impediu que fizesse um mestrado em imunologia. “Aí dei um pouco de sorte. Por volta de 2004, ocorreu um investimento governamental muito grande em ciência e tecnologia nas universidades públicas brasileiras”.

Agora sim com bolsas de estudo, fez doutorado na Universidade de São Paulo (Usp) e pós-doutorado no exterior. Morou em Portugal, estudou três anos e meio na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e mais um ano e meio na Suíça. Nas duas últimas se especializou em vacinologia. Em seus estudos, usou um método em que desenvolveu a vacina contra o vírus da zica ainda em modelos animais. Foi capa da prestigiada revista Vaccines.

Há poucos meses, deixou a Europa para levar seus conhecimentos (e o sotaque do interior da Bahia) para o Instituto do Coração (Incor), em São Paulo. No primeiro dia do novo trabalho, onde inicialmente daria continuidade às suas pesquisas sobre bactérias, estreptococos e uma vacina contra a chikungunya, foi chamado para almoçar com o chefe, o cardiologista Jorge Kalil.

Naquele almoço veio o convite para coordenar, aos 38 anos, a equipe que passaria a desenvolver no Brasil a vacina contra a Covid-19. Gustavo é o mais jovem entre os coordenadores da pesquisa. “Ele (o chefe) me deu as boas-vindas e a primeira coisa que falou foi: ‘então, vamos desenvolver a vacina do novo coronavírus’. A partir daí o tucanense não parou mais de trabalhar, mas arrumou um tempinho na agenda para conversar por telefone com o CORREIO.

CORREIO: Como era sua vida em Tucano e o que você se lembra do trabalho na feira desde os 8 anos de idade?

Gustavo Cabral: Sempre fomos muito humildes. Meu pai era agente de saúde, hoje aposentado, e minha mãe ajudante geral em uma escola. Eu passava boa parte do dia na feira para ajudar a família. Vendia manga e coco. Depois ficava até mais tarde vendendo geladinho. Ia para as feiras de Tucano e Jorro, que é vizinha. Aos 15 anos eu fui trabalhar em um açougue em Euclides da Cunha. Cheguei a ter duas bancas de carne, uma em Euclides e outra em Monte Santo. Eu estudava em escola pública, mas não conseguia estudar direito por causa do trabalho. Vendi as duas bancas e me matriculei em uma escola particular com um ensino melhor. Aquele dinheiro deu pra pagar o terceiro ano colegial na época.    

O que fez um adolescente que trabalhava desde criança ter a iniciativa de investir tudo nos estudos?

Inicialmente, eu só queria ter uma vida melhor. Para ser bem sincero, eu pensava em mim, em Gustavo. Daí eu imaginei: ‘vou parar com isso daqui porque eu quero ter uma vida melhor’. Eu não quero viver só para trabalhar e me preocupar se vou conseguir comprar minha comida. Foi aí que eu vi que a maioria das pessoas que estudavam tinha uma condição de vida boa.

Por que Ciências Biológicas?

Primeiro porque eu não tinha condição nenhuma de me manter financeiramente em Salvador. Tinha que ser um curso em uma cidade mais barata. Tinha o curso de Biologia na Uneb de Senhor de Bonfim. Também sempre achei legal as aulas de ciências. Achava interessantíssimo. Passei a me imaginar naquilo e acabei passando no vestibular. Minha família ajudava um pouco, eles conseguiam mandar R$30, R$40, R$ 50 por semana. No segundo ano da Uneb já consegui bolsas de pesquisa. Percebi que meus professores, mestres e doutores, tinham uma vida boa. Pensei: ‘Oxe, vou fazer mestrado também’. Foi quando fui trabalhar com imunologia na Ufba. 

Em que pé está a pesquisa e porque demora tanto para ter uma vacina?

Estamos na fase experimental, as coisas estão caminhando bem. Nós temos um corpo intelectual muito bom, com grandes cientistas. Você imagina como é que a gente vai aplicar alguma coisa no ser humano sem ter passado por todos os testes? É muito arriscado por duas questões: efeito colateral e simplesmente o fato de não funcionar. Imagina você expor a população a um sentimento de esperança, vacinar todo mundo e simplesmente não funcionar? Ou ter um efeito maléfico. Você submeteria um filho seu a uma vacina sem que tenham sido feitos todos os testes? Se tem uma coisa que a ciência nos ensina é ser humildes. Ciência segue rigores. E mesmo assim quando você acha que está no caminho certo, ela te leva para outro lugar. Tem muitas empresas fora do Brasil que gostam de fazer marketing em cima disso. Já anunciaram que tem vacina testada em animais e que vão testar vacinas em seres humanos. Mas não vi ainda nenhuma publicação sobre essa vacina.

Mas teremos uma vacina produzida pelo Brasil?

Para essa pandemia é muito difícil termos uma vacina, seja lá onde ela for produzida. A nossa melhor vacina hoje é o isolamento, a participação de todos, a informação, a solidariedade e o apreço à vida humana. A ideia é que nos próximos dois anos a vacina esteja pronta para ser usada na população. Outros países também estão desenvolvendo fórmulas, mas é importante que o Brasil tenha seus próprios produtos.

Então o senhor é a favor do isolamento social?

Sem dúvida. Uma doença que em três meses atinge mais de um milhão de pessoas e mata mais de 60 mil é algo muito grave.[Na sexta-feira (17), já eram 2,2 milhões de casos e 153 mil mortes]. Isso é número de guerra mundial, cara! Se alguém não considera isso letal essa pessoa precisa ser estudada. Isso a gente não tá contando as subnotificações. O isolamento é a única forma de se proteger. A gente precisa parabenizar os governadores. Tiveram uma postura, além de política, humana. Eles bateram o pé e seguiram as normas da Organização Mundial de Saúde (OMS). Isso nos deu um certo alívio. O Governo Federal, o presidente, tem sido irresponsável.  

O vírus te surpreendeu? Lá no início você esperava que ele se espalhasse dessa forma?

Foi uma surpresa muito ruim. A princípio achei que seria controlado. Com o conhecimento tecnológico que a gente tem hoje em dia não dava para esperar que se tornasse uma pandemia. Mas o vírus tem uma particularidade. Transmite muito facilmente. Ele surgiu há pouco mais de três meses. Quando surge algo desse tipo, a ideia é que ele fique naquela região e dali não saia. Mas é um vírus que se espalha muito rápido e pode ser letal.

Como se desenvolve uma vacina?

A primeira coisa é formar um corpo de intelectuais capacitados. Depois a gente vai para o laboratório e faz o trabalho in vitro, fora de qualquer corpo ou organismo, ou seja, trabalha com a célula. Só depois de muitos testes a gente vai utilizar, por exemplo, de modelos animais. E mesmo que dê certo em animais não é garantia de nada. Nesse caminho você pode ter que reformular sua teoria inicial diversas vezes. Até que você tem uma vacina capaz de proteger contra o vírus. Mas ainda não é o fim. A partir daí você vai fazer experimentos para saber se a vacina é tóxica para o ser humano. Não basta proteger contra o vírus. Não pode ser tóxica ou causar ainda mais problemas. Porque tem as variações de cada vírus. Se eu for desenvolver vacina contra a dengue, por exemplo, eu tenho que ter o maior cuidado com efeito colateral. A gente sabe que uma pessoa infectada com um tipo de dengue, se eu fizer uma vacina que não abrace todos os tipos da doença, em vez de proteger ela pode induzir a doença ainda mais forte em uma pessoa. 

O que o seu método de desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus traz de inovador?

Quando o vírus entra no corpo ele é reconhecido como algo estranho. O sistema imunológico ataca ele para destruí-lo. A gente tem que ativar o sistema imunológico, mas não pode utilizar o vírus. O que a gente faz? A gente cria uma partícula em laboratório chamada VLT (Virus Like Particle), ou seja, uma partícula semelhante ao vírus. Mas sem usar nenhum tipo de material genético, como faz a maior parte dos estudos. Ele tem a estrutura muito parecida com a do vírus, mas é feita de proteína. Com essa estrutura eu consigo ativar o sistema imunológico. Aí eu coloco um pedaço do coronavírus nessa partícula, justamente o pedaço que o vírus utiliza para entrar na célula, e induzo o sistema imunológico a responder. Aí o corpo vai atacar essa chave que o vírus utiliza. Sem a chave, ele não abre a porta. Foi com esse método que cheguei a uma vacina contra o vírus da zica ainda em modelo animal.

Você disse que a ciência nos ensina a ser humildes. O que esse vírus já nos ensinou e pode nos ensinar?

Olha, a ciência vinha sendo muito desrespeitada. Espero que esse momento sirva de lição. A ciência precisa de suporte. Se nossos governantes não respeitam os cientistas, quem sofre é a sociedade. Não existe estabilidade social sem ciência. Se a gente quer uma sociedade estável e segura, a gente precisa dessas pessoas. Se a gente quer ter uma saúde boa para todos, a gente precisa da ciência. Produzimos conhecimento. Conhecimento é muito caro. Vamos continuar importando esse conhecimento ou vamos desenvolver aqui? Vai ser tudo com a tecnologia dos outros? Precisa entender que ciência também é economia, é estratégia de saúde, é segurança, é muito além. O Brasil tem intelectuais do mais altíssimo nível. E os outros países vão continuar importando nossas cabeças, como eu mesmo que fui estudar fora? Se tivéssemos incentivo, se a criatividade do brasileiro fosse usada na ciência, seríamos uma potência científica. Ou você acha que meu passado em Tucano, onde eu tinha que me virar como podia, não serviu para mim enquanto pesquisador? Eu tinha que ser hábil para vender minha manga, meu geladinho, e ainda estudar.

A desvalorização da ciência é um problema ainda maior no Brasil?

Sim! Quando eu cheguei na Inglaterra para estudar, tive que apresentar meu passaporte a uma policial no aeroporto. Ela perguntou: ‘qual o motivo da sua vinda ao Reino Unido’. Respondi: ‘Sou pesquisador e vou trabalhar em Oxford’. A fisionomia dela mudou na hora. Me deu boas vindas e explicou tudo como eu fazia para chegar lá. Quer dizer, a cultura é muito importante. Aprender a valorizar um cientista enquanto agente de estabilidade social é muito importante.

O senhor também acredita em uma transformação das pessoas após a pandemia?

Uma coisa está atrelada a outra. Respeitar a ciência é, antes de tudo, respeitar o ser humano. Nós vamos ter muitas perdas, mas vamos passar por essa fase e espero que a gente melhore muito enquanto pessoas. Ciência é vida real, é sociedade. Acredito que uma nova sociedade vem por aí e essa fase de transição vai ser difícil, mas acho que vá valer a pena. A sociedade e a ciência têm muito a ganhar com um mundo em que todos são respeitados.


Fonte: Correio 24 Horas
Foto: Arquivo Pessoal

Comente

Participe e interaja conosco!

Arquivos

/* ]]> */