Nas últimas décadas uma imensa atenção tem sido dada ao tema dos zumbis no imaginário macabro da cultura de entretenimento. Sucessora de “Frankenstein” e “Drácula”, a mitologia dos zumbis surgiu e se espalhou como uma epidemia na cultura pop. Filmes, séries, videogames, HQs (também conhecidos como quadrinhos) e livros, contam histórias sobre cadáveres capazes de se mover, as vezes de forma lenta e desajeitada, outras vezes com agilidade sobre-humana, impelidos unicamente por uma fome voraz e insaciável da carne dos vivos. Corpos putrefatos incapazes de sentir dor, medo ou cansaço, os zumbis não têm memória, não possuem alma ou personalidade. Na maioria das vezes, o zumbi é contagioso: sua mordida fará o infectado se juntar a legião dos mortos-vivos.
Um dos aspectos mais explorados dessa mitologia é o “apocalipse zumbi” quando, de forma inexplicável e repentina, a maior parte da população da terra é transformada em mortos-vivos. Um exemplo é a HQ “The Walking Dead” que virou série de TV, batendo recordes de audiência com mais de 17 milhões de telespectadores num único episódio, e que deu origem a outros dois programas sobre o tema, quatro jogos de videogame, 11 livros e um jogo de tabuleiro. Na trama, uma epidemia de grandes proporções se espalha pelos EUA, transformando os infectados em zumbis. Sem nunca deixar claro qual é a origem do horrendo fenômeno, a série acompanha o policial Rick Grimes, que entrou em coma antes da crise e acorda em meio ao caos para partir em busca de sua família e de uma forma de sobreviver.
Outro exemplo é a série Reality Z, produção nacional da plataforma de streaming Netflix lançada em junho, que conta como o Rio de Janeiro é invadido por mortos-vivos que se levantam e tomam as ruas, enquanto um grupo de sobreviventes luta pela vida se abrigando no estúdio de um reality show de confinamento, sem que seus participantes façam ideia do que acontece lá fora.
Por que um cenário apocalíptico fictício tem sido cultuado e até mesmo aguardado por pessoas que declaram não só acreditar, como se preparar para sua hipotética chegada? Por que todo esse interesse nos zumbis? Quais os seus significados no inconsciente coletivo da humanidade?
Medo do Outro
Em “The Walking Dead” a sociedade como a conhecemos é destruída pela praga de mortos vivos e os sobreviventes vivenciam a fome, o medo e se veem obrigados a lutar incansavelmente para se manterem vivos. A possibilidade de laço social fica impedida ou, ao menos, seriamente ameaçada. Em meio ao caos, alguns dos sobreviventes vão revelando faces até então ocultas, o que deixa claro que os zumbis não são o único perigo que existe. Na série Reality Z temas como egoísmo, corrupção, racismo, conflitos de classe, abuso de autoridade e violência policial contra a mulher, incluindo até a questão dos milicianos cariocas, são abordados ao longo da trama do apocalipse zumbi na Cidade Maravilhosa. A grande ameaça nas obras sobre zumbis do século 21 é a falta de cooperação entre os sobreviventes e a desconfiança que nutrem uns pelos outros.
No mundo real, numa sociedade que já está acuada entre a pandemia e o caos econômico, a sanidade, humanidade e as noções de moral também vão sendo corroídas. Vivemos situação semelhante ao cenário psicológico dos filmes de terror, em que as pessoas temem serem contaminadas. Em plena pandemia da covid-19 temos visto pessoas agirem de forma irresponsável, egoísta e irracional, realizando eventos, “festas do corona”, causando aglomerações e o número de acidentes de trânsito se manteve comparável ao do ano passado, com a embriaguez ao volante se destacando como principal causa, mesmo em período de isolamento social. Como num filme sobre apocalipse zumbi estamos com medo que o outro se torne um perigo que deve ser evitado.
Perda da Individualidade
Numa horda infindável de mortos famintos, como as que são vistas no filme “Guerra Mundial Z” (2013), um zumbi não importa enquanto indivíduo. Seja lá quem ele foi um dia, isso se perdeu para sempre. O zumbi carece completamente de liberdade e individualidade. Uma horda zumbi, portanto, representa a absoluta massificação, a destruição do indivíduo e da possibilidade da vida individual. A professora Lee Weiser do departamento de psicologia da Universidade de Antioch, (Seattle, EUA) em seu artigo “The zombie archetype” (o arquétipo zumbi), publicado em 2015 pela revista Psychological Perspectives, afirma: “Os zumbis personificam a perda da vontade e o desempoderamento”.
Pesquisa da MindMiners, em parceria com o Núcleo de Inovação em Mídia Digital da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), para entender qual o impacto da utilização das redes sociais no cotidiano e na saúde mental dos brasileiros, mostra que, apesar de apenas 41% dos respondentes concordarem em algum grau que a reação das pessoas aos seus posts é importante, 63% afirmaram que, depois de postar algo, verifica ao menos uma vez o número de curtidas e visualizações e quem curtiu e visualizou suas publicações. Esse percentual aumenta para 74% entre os jovens de 18 a 24 anos.
O fascínio pelas histórias de zumbis está no medo que a humanidade sente de perder completamente seu poder de decisão individual e cada vez mais, as pessoas esperam receber aprovações em formas de likes, comentários e compartilhamentos. As redes sociais se tornaram um local de autoafirmação, onde o indivíduo só se reconhece enquanto sujeito diante da aprovação do outro.
Quem são os Zumbis
Em um tempo em que a humanidade está cada vez mais apegada aos bens, valores e prazeres materialistas, para muitos, supor que o homem possui uma natureza divina e uma alma imortal, que possa levar uma existência independente do corpo, que existam espíritos e um mundo espiritual se tornou fantasia. Longe de despertar sentimentos de compaixão e caridade, as religiões, em sua maioria, se tornaram mera formalidade ritualística, lideradas por mafiosos da fé que manipulam fieis e conspiram por riqueza e poder. A matéria se tornou a única substância. Não por acaso, os zumbis são a personificação do aspecto puramente material e desespiritualizado da morte: corpos putrefatos, que ainda assim, se movem, comem carne humana e nos ameaçam.
Marie-Louise von Franz, psicoterapeuta analítica, pesquisadora, escritora e importante continuadora do trabalho do psiquiatra e psicoterapeuta Carl Jung, ao analisar as fantasias apocalípticas em sonhos e imaginações ativas de seus pacientes, e seus paralelos em mitos e conto de fadas, chegou à conclusão que o inconsciente coletivo da humanidade está agitado. Para o professor de Sociologia da Universidade do Missouri Todd K. Platts em seu artigo “Localizando os zumbis na sociologia da cultura popular” publicado na revista Sociology Compass em 2013, “os zumbis falam sobre medos que são inerentes ao ser humano”.
A destruição do planeta pelo consumo exagerado de recursos naturais, o medo da erradicação da raça humana por uma pandemia, o terrorismo e o fanatismo religioso, a crise financeira mundial, a perda da individualidade pela globalização, os conflitos políticos, os efeitos de uma vida rotineira e cada vez mais desconectada da natureza e dependente da tecnologia, as minorias e a massa de refugiados excluídos são as desarmonias do homem moderno que se manifestam na cultura pop por meio das fantasias apocalípticas do fim do mundo invadido por zumbis. Todo este conteúdo corresponde, de maneiras compensatórias, às disposições e atitudes do comportamento predador, egoísta e insensível da sociedade. O zumbi carece de consciência e de qualquer conflito moral. Ele é uma personificação da fome e instinto predatório e nada mais. Esta não poderia ser a descrição de perfil de muitos de nossos líderes e representantes na política e de muitos homens de negócio e consequentemente parte da sociedade humana?
Não é mera coincidência que fantasias sobre cadáveres putrefatos animados por uma avidez lunática, desprovidos de qualquer consciência humana, irracionais e selvagens como animais predadores sedentos por sangue e famintos por carne humana, povoem o imaginário das pessoas atualmente. No filme “Dawn of de Dead” (“O Desperta dos Mortos”, 1978), de George Romero, os Estados Unidos estão sendo devastados por uma epidemia de causas desconhecidas que transforma pessoas em zumbis assassinos. A procissão de mortos-vivos é um espelho escancarado diante dos vivos, que também zanzam em desespero, jogados da noite para o dia num mundo sem lei nem ordem onde a vida é solitária, pobre, má, bruta e curta. Na trama, quando alguém indaga sobre quem são os zumbis, a resposta é esta: “Somos nós”.
Murilo Lima é analista comportamental, coach e especialista em gestão de empresas e empreendedorismo. Possui também formações em desenvolvimento de líderes, desenvolvimento estratégico e gestão da criatividade e inovação. Atualmente é gerente comercial da Jovem Pan Aracaju e mentor voluntário da ONG Projeto Gauss.
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