A recessão econômica em que o Brasil mergulhou a partir da crise política iniciada em 2014, após a conturbada reeleição da presidente Dilma Roussef, marcou os anos seguintes pelas dificuldades nas negociações coletivas entre trabalhadores e empregadores. Com as atividades econômicas em declínio, a produção em queda, o mercado de trabalho se retrai e os setores mais sensíveis, como o comércio e a indústria são os primeiros a sinalizarem os efeitos danosos da crise.
Os reflexos são imediatos nas relações de trabalho e o desemprego passa a ser o monstro a atemorizar os trabalhadores. Nesse cenário, as negociações protagonizadas por sindicatos de categorias profissionais e econômicos e empresas têm contornos e conteúdos bem diferentes dos presentes nos anos de estabilidade política e de crescimento econômico, normalmente marcados por avanços e conquistas da categoria obreira.
Confesso que como mediador dessas negociações no âmbito do extinto Ministério do Trabalho em Sergipe, assisti, a partir de 2015, cenas que ainda hoje quando relato não consigo disfarçar o marejar dos olhos. É doloroso lembrar a submissão imposta a legítimas lideranças sindicais, antes irredutíveis em mesas de negociação, e depois, como feras acuadas e fragilizadas, eram obrigadas a assinar acordos constrangedores, que retiravam direitos conquistados na luta, no confronto e no embate direto até com riscos a integridade física e a liberdade.
Nos anos anteriores a essa crise, costumava abrir as audiências de mediação para negociação dos acordos de data-base, alertando que o ponto de partida do reajuste salarial deveria ser com percentual no mínimo superior ao acumulado da inflação do período. Argumentava que se fosse para fixar apenas o INPC, não seria nem preciso estabelecer o processo de negociação, pois, a lei garantiria a atualização anual dos salários. A essa advertência à bancada patronal reagia com disfarçada reprovação, enquanto que a representação laboral aproveitava para justificar o “vitaminado” índice de reajuste pretendido.
O ganho real sob a justificativa de necessidade de reposição das perdas salariais acumuladas, normalmente era reivindicado pelos trabalhadores em percentuais esmeradamente verticalizados. A resposta da representação econômica, por usa vez, era uma ducha de água fria, pois, reduzia a pretensão laboral a índices bem abaixo dos propostos. Era assim que começava o processo de negociação de data-base.
No início, me intrigava esse fosso entre o que se pedia e o que se oferecia, pois, achava que as partes agindo assim não estavam ali para negociar, mas, apenas cumprindo uma etapa preparatória para futuro ajuizamento de dissídio coletivo. Depois, com a experiência, me acostumei com essas preliminares, pois, evidente que faz parte do jogo se pedir mais do que o pretendido e contrapor menos do que se está disposto a conceder.
Quando o impasse se estabelecia e o clima se aproximava do tensionamento, com risco de finalização sem consenso, recorria ao velho sermão. Lembrava que em negociação quem propõe tem que saber o momento de recuar e quem contrapõe o de avançar. Se no impasse, quando o elástico estica, uma parte não recua e a outra não avança, o consenso se distancia. A resposta a uma pretensão nunca deve ser um monossilábico não. Isso encerra o processo e, nesse ponto fazia referência à lição do filme The Negotiator (1).
Se o sequestrador, com o revólver na cabeça do refém, faz um pedido e recebe só um lacônico não, a vítima corre o risco de imediata execução. Para a continuidade do processo &e acute; essencial que toda proposta seja seguida de contraposta até que recuos e avanços construam o consenso.
Mas, nos anos difíceis depois de 2014, esse processo foi drasticamente invertido.
A Súmula 277, do TST (a ultratividade das normas coletivas de trabalho), vigente até antes da Reforma Trabalhista da Lei nº 13.467/2017, favorecia a postergação do fim do processo negocial, haja vista que garantia a eficácia das normas coletivas de trabalho mesmo após a sua vigência, até que fossem modificadas por novas condições pactuadas. Mesmo que isso assegurasse apenas os benefícios das chamadas cláusulas sociais, enquanto que as cláusulas econômicas não sofriam modificações, ou seja, os trabalhadores ficavam durante a negociação sem reajuste nos salários e nos valores dos benefícios como vale alimentação, cesta b&aacut esica, auxilio farmácia e outros.
Antes da referendada reforma trabalhista do Governo Temer, a postergação do processo negocial com a súmula da ultratividade era até suportável pela retroatividade a data-base. O que não era suportável agora era se submeter aos cortes salariais e a supressão de direitos propostos pelos empregadores pela alegada crise que fechava empresas e promovia o desemprego em massa. Para se contrapor a esse ambiente de queda da empregabilidade, o governo criou o Programa de Estabilidade do Emprego pelo qual foi permitido que por negociação coletiva a empresa reduzisse em até 30% os salários, sem prejuízo para o trabalhador que seria recompensado no mesmo percentual com recursos do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalho. O programa não vingou, tinha muitas amarras e, em mesa de negociaç&a tilde;o apenas uma empresa em Sergipe aderiu a esse arranjo emergencial.
Foi nesse cenário de insegurança política e econômica, que durante negociação de aditivo a acordo coletivo de um setor da indústria que muito sofreu com a estagnação, que assisti o momento mais doloroso de toda experiência como mediador público. O sindicalista, ativo e experiente negociador, formado no chão da fábrica e amadurecido nos embates salariais e na condução de greves, tentava de todas as formas reagir a pressão e, mesmo golpeado pelas adversidades da realidade, se recusava a aceitar a proposta que sem qualquer contrapartida reduzia salários e cortava gratificações e benefícios presentes na norma coletiva vigente.
A empresa argumentava a necessidade de evitar as famigeradas demissões que já tinham acontecido e a ameaça de novas que estavam para acontecer. O sindicalista, que naquele ano não assinara a convenção coletiva da categoria devido ao reajuste salarial de apenas metade do INPC, surpreendentemente propôs uma saída honrosa. Em lágrimas não contidas, pedia uma contrapartida, uma espécie de compensação “para ter coragem de enfrentar seus representados”: a suspensão das demissões pelo prazo mínimo de noventa dias. Nem essa empregabilidade efêmera foi concedida na celebração do aditivo e, por ironia do destino, o gerente que a negou não conseguiu garantir sequer seu próprio emprego, pois, na semana seguinte passou a engordar também as estatísticas de desempregados naqueles anos doídos.
Nilson Socorro é jornalista, professor, advogado e ex-secretário de Estado da Educação de Sergipe.
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