Desde a Revolução Francesa, em 1789, tornou-se expresso, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que todo acusado deve ser presumido inocente, até que seja declarado culpado (art. 9º). De igual modo, após os horrores do regime fascista e com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) consagrou o princípio da presunção de inocência ao estabelecer que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa” (art. 11).
Refletindo as declarações internacionais de direitos humanos, a Constituição brasileira consagra o princípio em seu artigo 5º, inciso LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A norma, porém, ao longo dos anos tem gerado distintas interpretações quanto ao seu alcance e, sobremaneira, quanto às suas repercussões práticas, como, por exemplo, a discussão em torno do início do cumprimento da pena, resultante de processo criminal.
O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o dispositivo, declarou constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
A muito esperada e histórica decisão da Corte deu-se no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, de relatoria do ministro Marco Aurélio de Mello, ao final do qual se concluiu que o início do cumprimento da pena deve ocorrer tão somente após o trânsito em julgado da condenação criminal.
O julgamento pretende encerrar, ao menos por ora, um ciclo de idas e vindas do entendimento jurisprudencial do STF, agora marcado por uma decisão de âmbito abstrato e efeito erga omnes, diversamente dos posicionamentos anteriores, manifestados em sede de habeas corpus, de impacto sabidamente mais restrito.
O debate em torno do princípio da presunção de inocência e da possibilidade do cumprimento provisório da pena é fértil, contrapondo juristas, acadêmicos e cidadãos em geral. De sorte que, mais do que simplesmente relatar um julgamento que esteve sob os olhos e sob a atenção do país, como foi o pronunciamento da Suprema Corte nas supracitadas ADCs, faz-se relevante pontuar algumas premissas e considerações para a melhor compreensão do alcance e do significado da decisão do Supremo Tribunal Federal. É o que se propõe nessas breves linhas.
A primeira nota digna de registro é que o Supremo não é – nem deveria ser – um representante do clamor popular, mas um intérprete qualificado da Constituição da República. Há certa incompreensão em torno do papel institucional do Supremo Tribunal Federal. As Cortes, diversamente dos Parlamentos, não são poderes eleitos, destinados a representar a vontade popular por meio de políticas públicas e sujeitas ao accountabillity das urnas.
O Poder Judiciário, notadamente as Cortes Constitucionais, no desenho da separação dos poderes, exerce, muitas vezes, a função de contrapeso da vontade popular. Cabe às Cortes garantir os direitos fundamentais e a ordem constitucional, interpretando a Carta Maior em última instância, ainda que contra a vontade das maiorias políticas de ocasião. Essa função institucional, velha conhecida da doutrina constitucional, é denominada de papel contramajoritário das Cortes.
Por essa razão, é que não cabe ao STF considerar, como fundamento de decidir, o “clamor popular”, sobremaneira quando considerá-lo implica em restringir o alcance de um direito fundamental, como é a presunção de inocência. O desejo social por punição célere e por ver os criminosos, sobremaneira os agentes políticos acusados de corrupção, atrás das grades pode servir como argumento sociológico e político de tomada de decisão dos poderes eleitos, mas não como fundamento jurídico válido de decidir em ação judicial – menos ainda em ação de controle concentrado de constitucionalidade, em que o que está em jogo é a compatibilidade de uma lei com o texto constitucional.
Quando a vontade popular, alimentada por questões conjunturais, se contrapõe a direitos fundamentais historicamente conquistados, é papel da Corte preservar a ordem constitucional e a integridade desses direitos.
O segundo ponto que merece destaque é uma leitura, ao nosso ver bastante reducionista e superficial, no sentido de que a proibição da execução provisória da pena representaria uma cabal demonstração de que o STF estaria protegendo os poderosos e sendo condescendente com a corrupção e a impunidade.
Os fenômenos sociais e jurídicos são complexos, de sorte que não se pode traçar uma relação de causa e efeito simplista na qual os que se posicionam em favor da execução antecipada da pena são tidos como os combatentes da criminalidade e aqueles favoráveis a que se aguarde o trânsito em julgado, vistos como cúmplices da impunidade e da corrupção.
Nesse ponto, importa citar o voto do ministro decano do STF, Celso de Mello, que há 30 anos mantém a mesma compreensão jurídica quanto à impossibilidade de execução provisória da pena. O ministro inaugurou seu voto repudiando com veemência as práticas de corrupção e a cooptação da política por interesses privados, ao invés de se voltar à realização do bem comum. Asseverou que: “nenhum juiz do Supremo Tribunal Federal, independentemente de ser favorável ou não à tese do trânsito em julgado, é contrário à necessidade imperiosa de combater e reprimir as modalidades de crime praticadas por agentes públicos ou por delinquentes empresariais”, afirmou o decano.
Assim, é preciso que se tenha cautela ao avaliar o julgamento de forma reducionista, como se se tratasse de ser a favor ou contra a corrupção ou a favor ou contra a operação Lava-Jato. Trata-se de profundas incursões jurídicas em torno do alcance do princípio da presunção de inocência e seu conflito com o poder-dever de persecução criminal dotado pelo Estado. Uma discussão que, em última instância, põe em xeque valores fundantes do Estado Democrático de Direito e da evolução histórica das garantias penais e processuais penais. De modo que em nada contribui, aliás, prejudica avaliar a questão sob a reduzida ótica do combate à corrupção, até porque a reprimenda penal é apenas uma das tantas formas de erradicação desse problema endêmico que assola o país.
Associada a essa questão, está a necessidade de se avaliar a orientação jurisprudencial ora firmada pelo Plenário da Corte com as dimensões que efetivamente possui e as consequências que produz sobre a ordem constitucional – e o sistema penitenciário – brasileiros, e não como uma decisão de caso concreto ou de ocasião. Para ser mais direto, não é sobre a Lava-Jato ou sobre o Lula, é muito mais que isso. Há, por óbvio, impacto jurídico sobre esses casos e forte exploração midiática em torno deles, mas a questão de fundo e que guarda proporções muito maiores é a posição externada pela Corte no sentido da plena garantia da presunção de inocência, sobremaneira em tempos em que sofre forte ataque da opinião pública. A assunção desse posicionamento nos leva a duas análises: uma sob o aspecto institucional da Corte e outra sob o viés do direito fundamental debatido em questão.
No plano institucional, há um reforço e um reconhecimento da própria Corte quanto ao seu papel contramajoritário. Uma espécie de recado institucional de que o Tribunal não está disposto a se dobrar a pressões políticas ou abrir mão de sua autonomia decisória e de interpretar a Constituição com independência. Pode soar, para alguns, como uma posição impopular ou até mesmo de empáfia, mas reafirma o desenho institucional da separação dos poderes firmado na Constituição de 1988, em favor dos direitos fundamentais, ainda que contra maiorias políticas.
Já sobre a questão de fundo, o Tribunal, ainda que por apertada maioria, firmou a impossibilidade de se executar provisoriamente uma pena que pode, mais adiante, ser reformada, tendo sido usurpada a liberdade daquele que foi encarcerado injustamente.
A história do constitucionalismo é a narrativa do estabelecimento – e da ampliação contínua e progressiva – de direitos que protejam os indivíduos e as sociedades de governos autoritários e despóticos. A presunção de inocência é um direito conquistado a duras penas, após séculos de condenações calcadas na “vontade divina” ou na vontade autocrática do monarca.
O clamor popular pela punição da classe política que subverteu seus mandatos traindo a confiança do povo e voltando-se a interesses privados ao invés da promoção do interesse popular é justo, compreensível e precisa ser ouvido. No entanto, o Estado, a pretexto de punir criminosos, não pode tornar-se um deles. Não se combate o crime cometendo crime ou violando garantias constitucionais historicamente reconhecidas. Os criminosos devem sim ser punidos, com o respeito ao devido processo legal e às regras constitucionais vigentes.
Há que se considerar, além disso, os impactos da decisão para o sistema carcerário brasileiro e para aqueles que majoritariamente o compõem: os pobres e negros. A execução provisória da pena reforça a seletividade do sistema penal ao flexibilizar a presunção de inocência dos condenados, havendo, ainda, possibilidade de reforma das decisões.
Ademais disso, um levantamento demonstrou3 que a Defensoria Pública tem mais recursos providos nos Tribunais Superiores do que os advogados particulares. Isso significa que a decisão do STF não favorece uma minoria abastada que tem condições financeiras de arcar com advogado para recorrer aos tribunais superiores, mas, sim, garante direitos sobremaneira da classe baixa, que majoritariamente preenche as vagas das penitenciárias brasileiras, assegurando que uma pessoa só seja efetivamente encarcerada quando declarada definitivamente culpada pelo sistema jurídico. Isso evita que pessoas frequentem as prisões – tidas mais como “escolas do crime” do que espaços de ressocialização – de maneira injusta e desnecessária.
A decisão tomada pelo Supremo Tribunal é acertada do ponto de vista constitucional. A Constituição da República é literal ao garantir, em seu art. 5º inciso LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Embora alguns votos tenham ressaltado que a Carta fala em “ser considerado culpado” e não em “cumprir pena”, não se pode olvidar que a culpabilidade é pressuposto da reprimenda penal. Assim, inafastável a compreensão de que a plena garantia do princípio da presunção de inocência exige que a prisão penal somente se dê após o trânsito em julgado da decisão condenatória.
As relativizações e fissuras no devido processo legal em nome de um suposto combate a um mal maior não compensam e representam graves riscos para os direitos dos cidadãos. A magnitude do princípio da presunção de inocência para a ordem constitucional e a importância do direito que se põe em risco ao relativizá-lo, qual seja o direito à liberdade, não deixam dúvidas quanto ao acerto da posição firmada pela Suprema Corte do país.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é advogado, doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha), ex-presidente do Conselho Federal da OAB e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da entidade.
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