Vivemos num Brasil constantemente em transe (para lembrar Glauber Rocha) e isto, é público e notório a cada dia. Vivemos sob um governo que assumiu o desgoverno, a incompetência e a necropolítica como lógica de poder. E conseguiu uma legião de adeptos que se mostram cada vez mais na sua frieza, na debilidade mental e na falta de vergonha. Triste ver tudo isto… E mais triste ainda, saber que esta “cultura bolsonarista” impregna todo o tecido social, inclusive a sociabilidade religiosa (cristã, bem mais).
O grau alto de polarização no cristianismo brasileiro atual é visível e extrapolou as igrejas e as salas fechadas e ganhou as redes sociais. Um certo cristianismo aprendeu a odiar e tá purgando seus fantasmas nesse sentimento e na divisão da Igreja Católica mais ainda.
O Brasil vive, desde tempos ditatoriais pós-1964, seu pior momento. Em tudo. Da sociabilidade às redes sociais, da vida religiosa à vida política, da educação à família, dos meios de comunicação à vida pública… Um país desgovernado ganha corpo num momento em que mais 470 mil pessoas foram mortas pela Covid, numa completa confusão sobre as vacinas (com pessoas brigando contra vacinas!!!), um empobrecimento à olhos vistos (o Brasil volta ao mapa mundial da fome), uma juventude sem perspectiva de futuro… Dias terríveis. E com raros horizontes de mudança.
Nesses momentos, precisamos de pessoas fortes e corajosas que encarnem uma mensagem coletiva de esperança. Que nos reportem a uma tradição de “humanismo radical” presente na história do século XX diante de barbáries.
Tenho acompanhado de longe e via redes sociais, o trabalho do Pe. Júlio Lancellotti em São Paulo. Cidade símbolo de profundas contradições.
O Pe. Júlio nos coloca diante da necessidade de olharmos e de sabermos dos mais abandonados, dos rejeitados e dos odiados… Da população em situação de rua. Homens, mulheres, jovens. O distinto religioso se dedica diuturnamente a essas pessoas. Lhes conhece pelo nome se torna uma referência para elas. Lhes arruma água e comida, roupas e cobertores, lhes concede uma palavra amiga e espiritual. Sem preconceitos, o padre acolhe a todos e todas e divulga suas dores e convoca uma sociedade ainda não contaminada com o ódio aos pobres a se fazer presente enquanto auxilio justo e necessário.
O Pe. Júlio nesse mês de junho foi violentamente atacado em redes sociais por grupos católicos conservadores por ter sugerido numa de suas missas transmitidas numa rede social um livro em que aparece uma reflexão teológica a partir de pessoas LGBT. O padre não foi cobrado pela falta de caridade pelos católicos, mas por um moralismo tolo, desinformado e insensível. Vemos dia a pós dia uma geração de católicos de todas as idades que propagam e acreditam em bobagens sem base teológica alguma chamada de “ideologia de gênero”. Ficaram cegos pela própria ideologia.
Em tempos nefastos, o Pe. Júlio vive e inspira uma fé religiosa profunda e comprometida com os mais pobres e abandonados desse país. Merece mais que respeito, merece apoio e incentivo em sua luta cotidiana. Quando ultrapassarmos esses tempos sombrios de Brasil, teremos na memória e nas ações do Pe. Júlio um sinal de resistência e esperança para gerações futuras. Veremos registrado o seguinte: em dias de tormento e desespero, ele foi presença firme e acolhedora.
Romero Venâncio é teólogo, filósofo, doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Este artigo reflete apenas o pensamento do articulista, não sendo necessariamente a opinião do Hora News.
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