A liturgia do cargo: entre a vida privada e a vida pública

A “liturgia do cargo” é um conceito que remete à formalidade e ao respeito inerentes às funções públicas, destacando a importância do comportamento e das ações de quem ocupa posições de poder. Originado na terminologia religiosa, o termo foi popularizado na política brasileira pelo ex-presidente José Sarney, que buscou traduzir a solenidade do exercício do poder em rituais que refletem a dignidade do cargo. A liturgia do cargo implica que aqueles que ocupam funções públicas não são apenas representantes de uma instituição, mas também símbolos do próprio Estado e da sociedade que governam.

A importância da liturgia do cargo não pode ser subestimada. Ela define uma linha tênue entre a vida privada e a vida pública, exigindo que figuras públicas mantenham uma postura que reflita não apenas sua competência, mas também um respeito pela função que exercem. Não basta ser, é importante parecer. Isso se torna ainda mais crucial em uma democracia representativa, onde a percepção do povo sobre seus governantes é fundamental para a legitimidade das instituições.

Um exemplo claro dessa confusão entre vida privada e vida pública pode ser observado nas atitudes do ex-presidente Jair Bolsonaro. Seu estilo descontraído e, muitas vezes, informal em eventos públicos, como a famosa imagem dele comendo pizza com ministros em Nova York, gerou controvérsias e questionamentos sobre sua adequação à liturgia do cargo. Comportamentos que incluíram insultos a ministros do Supremo Tribunal Federal ou declarações explosivas em momentos de crise, como os berros contra instituições democráticas, demonstraram um desprezo pela gravidade do cargo que ocupava. Essa falta de respeito não apenas macula a imagem do presidente, mas também deslegitima a função pública em si.

O comportamento de figuras públicas pode ter impactos diretos na sociedade. O governador de Sergipe, Fábio Mitidieri, por sua relação agressiva, desrespeitosa e conflituosa com os professores (“nunca vi vocês trabalhar”), exemplifica como ações que ignoram a liturgia do cargo afetam a credibilidade do governo e a qualidade dos serviços públicos. Ao tentar silenciar o Sindicato dos Trabalhadores em Educação, Mitidieri, numa postura inadequada à função pública que ocupa, não apenas desconsidera as demandas legítimas da classe, mas também erode o respeito e a confiança que os cidadãos depositam em suas lideranças.

Falas e ações excessivamente descontraídas e de improvido do presidente Lula, que frequentemente já censurado por ferir a liturgia do cargo, o recente caso do deputado federal Nikolas Ferreira usando uma peruca em sua fala no Congresso e tratando de um tema importante com deboche, são outros exemplos de figuras públicas que, ao não seguir a “liturgia do cargo”, geram insegurança, desconfiança e perdem credibilidade.

No outro extremo, a análise do comportamento da prefeita eleita de Aracaju, Emília Corrêa, ao celebrar sua vitória com uma apresentação gospel e maquiagem de leão, revela outro aspecto da liturgia do cargo. Sua performance, embora recheada de simbolismo e fé, suscitou críticas sobre o risco de que sua expressividade religiosa possa, de alguma forma, marginalizar a diversidade cultural e religiosa da população. O ato foi interpretado por alguns como uma “intolerância reversa”, onde a fé, que deveria ser uma força de união, torna-se uma barreira para a aceitação de diferenças, ainda mais, pelo fato de, no dia 1º de outubro, a então ainda candidata Emília Corrêa não ter participado, nem sequer enviado representantes, para a assinatura da carta de compromisso que propõem medidas para garantir que as religiões de matriz africana recebam o apoio e a atenção que outras expressões religiosas já possuem na capital. Sua ausência ao evento levanta questionamentos sobre seu compromisso com a causa dos povos de terreiro. Agora, com sua eleição a prefeitura de Aracaju vem à tona a responsabilidade de equilibrar a expressão pessoal e a liturgia do cargo, sem deixar que a primeira se sobreponha à segunda.

Esses casos nos levam a refletir sobre a essência da vida pública e sua relação intrínseca com a vida privada. Se, por um lado, é essencial reconhecer que todos têm o direito à vida privada e à liberdade de expressão, por outro, a política não deve ser um espetáculo onde muitas figuras públicas tratam assuntos sérios com deboche ou desdém ou se expõem excessivamente. Ao se tornarem figuras públicas, especialmente em cargos de poder, todas essas pessoas devem estar cientes de que suas ações e declarações não afetam apenas suas reputações pessoais, mas também as instituições que representam. É essencial, portanto, que os ocupantes de cargos públicos compreendam que seu comportamento deve ser condizente com a liturgia do cargo, respeitando a linha que separa a vida privada da vida pública. As manifestações pessoais e as crenças individuais são respeitáveis, mas a forma como se apresentam ao público deve ser cautelosa e ponderada.

No cerne da liturgia do cargo está a expectativa de que aqueles que exercem funções públicas mantenham uma conduta que exija respeito e dignidade, refletindo as responsabilidades e o simbolismo de suas posições. A população espera que líderes políticos conduzam suas funções com responsabilidade, evitando comportamentos que coloquem em risco a integridade do sistema democrático.

A liturgia do cargo não é uma questão de elitismo ou de imposição de padrões morais, mas sim uma defesa da decência e da ética na administração pública. Ela estabelece que, independentemente de suas opiniões pessoais ou estilos de vida, figuras públicas devem agir de forma a preservar a confiança da sociedade nas instituições e nos processos democráticos.

A sociedade está cada vez mais crítica e capaz de avaliar quem cumpre e quem não cumpre a liturgia do cargo. Em tempos em que a política é constantemente escrutinada, preservar a liturgia do cargo se torna uma necessidade para todos os homens e mulheres públicos, não apenas para a credibilidade destes líderes, mas para a saúde das instituições que representam e para o fortalecimento da democracia que todos desejamos.


Murilo Lima é professor, acadêmico de Filosofia, analista comportamental, especialista em gestão de empresas, gerente comercial da Jovem Pan Aracaju, e articulista colaborador do Hora News.

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