O paradoxo é esse: os que se dizem defensores da liberdade, no seu amplo sentido, podem ser os mesmos a utilizar esse argumento para desfechar campanhas de censura. Quando se fala em censura, logo se pensa na proibição de se veicular ideias pela imprensa ou por livros.
A censura da imprensa é mais complicada, pois implica num controle maior da máquina estatal e provoca reações internacionais. Porém, existe um tipo de censura mais sorrateira com resultados mais duráveis. Trata-se da retirada, das estantes das bibliotecas das escolas, ginásios e universidades, de livros considerados impróprios, imorais, não adequados a crianças e jovens.
Alertado por notícias publicadas na imprensa alemã e francesa sobre uma depuração de livros no Estado mórmon norte-americano do Utah, acabei descobrindo haver essa mesma tendência, de uma maneira geral e surpreendente, nos Estados Unidos, pátria do Playboy, a revista masculina do quase nu, aguçadora da descoberta sexual em milhões de masturbadores adolescentes.
Na Flórida, não foram colocados livros no index, mas uma professora e diretora de escola foi obrigada a se demitir depois de ter dado uma aula sobre a Renascença. Durante a aula, a professora utilizara reproduções das principais obras do escultor italiano Michelangelo, entre elas a de David, nu, sem folha de figueira ou de parreira cobrindo suas intimidades.
Alguns pais dos adolescentes, demonstrando ignorância e moralismo exacerbado, queixaram-se à direção do colégio, denunciando a exposição de seus filhos à pornografia. Não foram os primeiros a considerar imoral mostrar o sexo, mesmo em repouso, numa obra de arte. Nos meados do século XVIII, o Papa Clemente 13, mandou colocar folhas de figueira ou parreira cobrindo os órgãos genitais de esculturas e pinturas. Nem o Juízo Final, do mesmo Michelangelo, exposto na Capela Sistina, escapou da censura com folhas, véus ou lenços.
A diretora do museu de Florença, onde está a escultura de David, o herói bíblico, lamentou a mente pervertida e a ignorância dos pais responsáveis pela demissão da professora na Flórida.
O Jornal da USP publicou, no ano passado, duas ilustrativas entrevistas sobre a censura nas artes, mostrando como isso tem se manifestado no Brasil. Para a professora Maria Cristina Castilho Costa, da Escola de Comunicações e Artes da USP, a censura não é um recurso exclusivo de ditaduras. “Ela sempre existiu na sociedade, desde que surgiu a cultura, porque a cultura é uma ordem, um sistema hegemônico, e as pessoas nem sempre se identificam com essa cultura hegemônica. Então, cria-se um conflito entre o que os cidadãos pensam e o que pensa a cultura hegemônica”.
O professor Eduardo Victorio Morettin, da mesma escola, lembrou de Roberto Alvim, ex-secretário especial de Cultura do governo Bolsonaro, que chegou a fazer alusão a discursos nazistas, defendendo uma arte “heroica, nacional e de grande capacidade de envolvimento emocional”, além de “profundamente vinculada às aspirações urgentes do povo”. Nesse caso, o ministro bolsonarista de preferências nazistas não propunha censura e interdição de obras artísticas, mas sua substituição por outras patrióticas e heroicas.
Morettin citou também como exemplos de reais expressões de censura no governo bolsonarista, o fechamento da Cinemateca e o esvaziamento da Ancine.
A censura pode ter uma determinante religiosa, provocadora de moralismos pretensamente cristãos como no Estado de Utah, nos EUA, ou pode ser política, como ocorreu durante a ditadura militar. Em Utah, um grupo de pais, inconformados com a longa relação de livros retirados das bibliotecas por apologia do sexo, entrou com uma petição inovadora, embora destinada à rejeição pelo governo: a de se retirar também das bibliotecas a Bíblia, na qual o sexo tem um lugar de destaque, entre seus personagens e na frequente citação de modalidades sexuais consideradas pecaminosas.
No caso da demissão da professora e diretora Hope Carrasquilla, na Flórida, nos EUA, por ter mostrado David nu, existe uma mistura de fatores conservadores determinados por crenças religiosas mas igualmente interesses políticos e econômicos reacionários. As escolas privatizadas na Flórida, ao contrário do que ocorre com as escolas públicas, deram um poder superdimensionado às associações de pais de alunos, pois são eles que mantêm as escolas com o pagamento das mensalidades, tanto que bastou uma única queixa para provocar a demissão da professora e diretora. Segundo noticiário local reproduzido na imprensa européia, foi o governador conservador republicano Ron DeSantis da Flórida, provável concorrente de Donald Trump nas eleições presidenciais norteamericanas, quem reforçou de maneira desmesurada o poder dos pais nas escolas privadas, a ponto de poderem intervir no próprio programa escolar.
Rui Martins é jornalista, escritor, autor do livro “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”. Estudou no l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, e fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na Universidade de São Paulo (USP).
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