O reconhecimento de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1232 — que discute a competência da Justiça do Trabalho para julgar ações relativas à suposta fraude na contratação de pessoas jurídicas por meio da chamada pejotização — acende um sinal de alerta grave: o possível esvaziamento da jurisdição trabalhista justamente em sua função mais essencial, que é o exame da existência ou não de vínculo de emprego.
A pejotização, como se sabe, consiste na contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas criadas artificialmente, muitas vezes a pedido do próprio tomador do serviço, com o claro objetivo de fraudar a legislação trabalhista, afastando direitos como férias, 13º salário, FGTS, horas extras e a proteção previdenciária. O artifício pode ser novo, mas a fraude é antiga.
E aqui está o cerne do problema: quem deve julgar se houve ou não relação de emprego disfarçada sob a roupagem de contrato civil? A resposta parece óbvia: a Justiça do Trabalho.
O art. 114, I, da Constituição Federal, após a Emenda Constitucional nº 45/2004, ampliou significativamente a competência da Justiça do Trabalho, que passou a abranger não apenas as relações de emprego, mas todas as relações de trabalho. Essa mudança foi deliberada, consciente e respaldada por forte orientação doutrinária e jurisprudencial.
Portanto, o núcleo da competência trabalhista é a análise da prestação laboral concreta, para declarar ou afastar o vínculo empregatício. A tentativa de deslocar essa análise para a Justiça Comum representa um grave retrocesso jurídico, institucional e social.
Em verdade, o que se discute no Tema 1232 é mais do que uma questão de competência jurisdicional: é um embate entre a forma e o conteúdo, entre o direito como instrumento de justiça social e o direito como mecanismo de blindagem empresarial.
Ao considerar que a relação entre a empresa contratante e a pessoa jurídica do trabalhador é, prima facie, uma relação entre entes civis, o STF parece ignorar o próprio princípio da primazia da realidade, consagrado no Direito do Trabalho.
Esse princípio determina que, em caso de divergência entre a forma e a prática, prevalece a realidade dos fatos. Se o trabalhador presta serviços pessoalmente, com habitualidade, subordinação e onerosidade, o vínculo empregatício está configurado, independentemente de haver um CNPJ no meio.
Permitir que essa fraude escape ao crivo da Justiça do Trabalho é legitimar o uso da pejotização como ferramenta institucional de precarização, enfraquecendo as garantias mínimas de proteção social do trabalhador.
A Justiça do Trabalho não é um apêndice do Poder Judiciário . Trata-se de uma instituição vocacionada à pacificação dos conflitos oriundos do mundo do trabalho, com expertise histórica e técnica para interpretar a relação laboral em suas múltiplas formas.
Negar-lhe a competência para declarar ou afastar o vínculo de emprego é não apenas um equívoco técnico, mas um gesto simbólico de descrédito à sua função constitucional.
Admitir que a Justiça Comum decida se há ou não relação de emprego é deslocar o eixo de proteção do mais fraco para um sistema que não foi construído para isso. E é, sobretudo, um grave precedente para a relativização de toda a lógica protetiva do Direito do Trabalho.
A eventual decisão do STF de retirar da Justiça do Trabalho a competência para julgar fraudes na pejotização significará um ataque direto à sua razão de existir. Trata-se de uma ameaça institucional, jurídica e social.
Fraudes não podem ser protegidas por formalidades. A Justiça do Trabalho existe, precisamente, para romper essas aparências e alcançar a verdade material.
É hora de resistir. Os valores sociais do trabalho são fundamentos da República Federativa do Brasil, assegurando direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores. Retirar da Justiça do Trabalho o poder de julgar demandas relativas à pejotização fraudulenta é fragilizar o próprio Estado Democrático de Direito.
Pejotização não é modernidade. Quando usada para fraudar direitos, é ilegalidade travestida de contrato. E a Justiça do Trabalho existe justamente pra isso: pra olhar além do papel e enxergar a realidade.
Henri Clay Andrade é advogado e ex-presidente da OAB Sergipe.
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