Neste momento histórico em que o Brasil se situa entre o seu passado e o seu futuro, torna-se essencial enfatizar a necessidade de proteção da liberdade de imprensa, pois essa prerrogativa político-jurídica, que também constitui direito fundamental da cidadania, representa um dos pressupostos legitimadores da própria noção de Estado democrático de Direito.
Na realidade, e tal como proclamou a “Declaração de Chapultepec” , que consubstancia verdadeira Carta de Princípios adotada pela Conferência Hemisférica sobre liberdade de Expressão realizada na cidade do México, em 11 de março de 1994 (há 29 anos, portanto), uma imprensa livre é condição fundamental para que as sociedades resolvam seus conflitos, promovam o bem estar e protejam sua liberdade.
É que não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa, na exata medida em que esse direito, por traduzir uma prerrogativa inalienável dos cidadãos, não pode sofrer restrições nem limitações de qualquer ordem, especialmente quando impostas pelo Estado e por seus agentes.
A ampla difusão da informação, o exercício irrestrito de criticar e a possibilidade de formular denúncias contra o Poder Público representam expressões essenciais dessa liberdade fundamental, cuja prática não pode ser comprometida por interdições censórias ou por outros artifícios estatais utilizados para coibi-la, pois — cabe sempre insistir — esse direito básico, inerente às formações sociais livres, não constitui concessão estatal, mas representa, sim, um valor inestimável e insuprimível da cidadania, que tem o direito de receber informações dos meios de comunicação social, a quem se reconhece, igualmente, o direito de buscar informações, de expressar opiniões e de divulgá-las sem qualquer restrição, em um clima de plena liberdade.
Sempre assinalei , em meus julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que o conteúdo da “Declaração de Chapultepec” revela-nos que nada é mais nocivo, nada é mais perigoso do que a pretensão do Estado e dos seus agentes de regular a liberdade de expressão (ou de ilegitimamente interferir em seu exercício), pois o pensamento há de ser livre, permanentemente livre, essencialmente livre!
Todos sabemos que a liberdade de expressão, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República, assegura ao profissional de imprensa — inclusive àquele que pratica o jornalismo digital — o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e em tom contundente, contra quaisquer pessoas ou autoridades, garantindo-lhe, também, além de outras prerrogativas, o direito de veicular notícias e de divulgar informações.
Ninguém ignora , no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, que se mostra intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica e a circulação de notícias revelem-se inspiradas pelo interesse coletivo e decorram da prática legítima de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, artigo 5º, IV, c/c o art. 220).
Não se pode desconhecer que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, entre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.
É por isso que sempre enfatizei, em inúmeras decisões que proferi no Supremo Tribunal Federal, que o exercício da jurisdição, por magistrados e Tribunais, não pode converter-se em prática judicial inibitória, muito menos censória, da liberdade constitucional de expressão e de comunicação, sob pena de esse poder atribuído ao Judiciário qualificar-se, perigosa e inconstitucionalmente, como o novo nome de uma inaceitável censura estatal em nosso país.
A interdição judicial imposta a jornalistas e a empresas de comunicação social, impedindo-os de noticiar ou de veicular dados relativos a práticas ilícitas ocorridas nos meios governamentais, não importando a posição hierárquica dos agentes públicos envolvidos, configura, segundo entendo, clara transgressão ao comando emergente da Constituição da República que consagra, em plenitude, a liberdade de imprensa.
Não constitui demasia insistir na observação de que a censura, por incompatível com o sistema democrático, foi banida do ordenamento jurídico brasileiro, cuja Lei Fundamental — reafirmando a repulsa à atividade censória do Estado, na linha de anteriores Constituições brasileiras (Carta Imperial de 1824, artigo 179, no 5; CF/1891, artigo 72, § 12; CF/1934, artigo 113, no 9; CF/1946, artigo 141, § 5º) — expressamente vedou “(…) qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (CF/88, artigo 220, § 2º).
Cabe acentuar, ainda, que a vedação à prática da censura, além de haver sido consagrada em nosso constitucionalismo democrático, representa expressão de um compromisso que o Estado brasileiro assumiu no plano internacional, como resulta da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e da Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada Pacto de São José da Costa Rica.
O peso da censura — ninguém o ignora — é algo insuportável e absolutamente intolerável. Por isso, não podemos — nem devemos — retroceder nesse processo de conquista e de reafirmação das liberdades democráticas.
Ruy Barbosa, em magnífico texto no qual registrou as suas considerações sobre a atuação arbitrária do Marechal Floriano Peixoto durante a Revolução Federalista e a Revolta da Armada (“A Ditadura de 1893”), após acentuar que o primado da lei (“rule of law“) não podia ser substituído pelo império da espada, assim se pronunciou sobre a questão da censura estatal:
“A Constituição proibiu a censura irrestritamente, radicalmente, inflexivelmente. Toda lei preventiva contra os excessos da imprensa, toda lei de tutela à publicidade, toda lei de inspeção policial sobre os jornais é, por consequência, usurpatória e tirânica. (…).”
Essencial reconhecer, pois, em face do que se vem de dizer, que a liberdade de imprensa, que não se reveste de caráter absoluto (CF/88, artigo 220, § 1º, parte final), qualificada por sua natureza essencialmente constitucional, assegura aos profissionais de comunicação social, inclusive aos que praticam o jornalismo digital, o direito de buscar, de receber e de transmitir informações e ideias por quaisquer meios, ressalvada, no entanto, a possibilidade de intervenção judicial — necessariamente “a posteriori” — nos casos em que se registrar prática abusiva (ou anômala) dessa prerrogativa de ordem jurídica, como sucede na divulgação de “fake news”, nas ofensas ao patrimônio moral das pessoas, na apologia e incitação ao crime, nas manifestações de intolerância, ódio, preconceito e discriminação ou em matéria que constitua estímulo à hostilidade e à violência (Convenção Americana de Direitos Humanos, Artigo 13, nº 5 ) .
Importante relembrar, neste ponto, a correta advertência do ministro Alexandre de Moraes, do STF e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), quando de sua posse como presidente do TSE : “(…) liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, de destruição das instituições, de destruição da dignidade e da honra alheias. Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos. A liberdade de expressão não permite a propagação de discursos de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito , inclusive durante o período de propaganda eleitoral (…)”
Finalmente, há a considerar que a Constituição resguarda amplamente o sigilo da fonte em favor do jornalista, quando, a critério do próprio profissional de imprensa (e deste, apenas), ele assim o julgar necessário ao seu exercício profissional.
A prerrogativa do jornalista de preservar o sigilo da fonte (e de não sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, legal, judicial ou administrativa, em razão da prática legítima dessa franquia outorgada pela própria Constituição da República), por traduzir direito subjetivo do profissional de imprensa , oponível a qualquer pessoa ou autoridade, como reiteradas vezes já decidiu nossa Suprema Corte, qualifica-se como verdadeira garantia institucional destinada a assegurar o exercício do direito fundamental de livremente buscar e de transmitir informações.
Em suma: revela-se inquestionável a asserção de que a liberdade de imprensa constituirá, sempre, um valor a ser permanentemente defendido, pois, sem ela, a ordem democrática restará desfigurada e gravemente comprometida.
Celso de Mello é ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo
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