O solo onde são cultivadas as liberdades individuais constitui um espaço inviolável, essencial e indissociável da pessoa humana. Profanar esse território sagrado equivale, em última análise, a subtrair ao indivíduo sua própria humanidade e todos os direitos decorrentes dessa condição.
Em uma democracia liberal, na qual a tripartição dos poderes exsurge como garantia do cidadão contra os riscos decorrentes do acúmulo de funções nas mãos de uma só pessoa, compete exatamente ao Poder Judiciário proteger o indivíduo de eventual violação ou ameaça de violação de seus direitos.
O Poder Judiciário simbolizando a última fronteira do indivíduo na luta pela efetivação de seus direitos, portanto, não é simples aspiração da coletividade, construção poética ou imagem romântica sem lastro na realidade. A bem da verdade, configura fiel expressão de um modelo que vem se aperfeiçoando década sobre década, notadamente nas democracias ocidentais, desde a rumorosa passagem do Estado Absolutista para o Estado Liberal.
Portanto, se o Poder Judiciário se deixa corromper ou degenerar, a ponto de não mais poder exercer a função de garantidor do Estado Democrático de Direito, restará irremediavelmente comprometida a engrenagem do sistema de freios e contrapesos que impede o desequilíbrio entre os poderes pelo acúmulo de funções. E, à falta de uma autorregulação das funções estatais resultante do hipertrofiamento de um poder em detrimento dos demais, instala-se o desequilíbrio em favor de uma pessoa ou grupo, de um lado, e em desfavor da coletividade, do outro.
Ao afirmar que a “A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”, Ruy Barbosa não subestimou o poderio dos canhões e baionetas que irrompem em momentos de crise e instabilidade, mas alertou-nos acerca dessa doença corrosiva e contagiosa que, sem o estrépito assustador de milhares de botas e cascos batendo contra o chão, mina paulatina e silenciosamente a democracia, com a eficiência e a voracidade de um exército de cupins esfomeados.
Recentemente, o STF violou a Constituição Federal e as leis processuais ao instaurar um inquérito para apurar a prática de crimes contra seus membros, alegando uma suposta omissão do Ministério Público Federal e fundamento no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. No mesmo passo, determinou, por decisão majoritária, a aplicação da Lei do Racismo aos crimes homotransfóbicos até a edição de lei específica, violando, assim, os princípio da reserva legal (art. 5º, inciso XXXIX, da CF/88) e da independência dos poderes.
No último dia 16 de fevereiro, o pretório excelso promoveu um novo avanço sobre posições da democracia, desta feita prendendo em flagrante um deputado federal que postara um vídeo em suas redes sociais com apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5) e defendendo a destituição de ministros do STF.
Se as reivindicações do deputado Daniel Silveira (PSL) são inconstitucionais ou beiram a insanidade, encontrando adequação típica em algum dispositivo da Lei de Segurança Nacional, caberia ao Procurador-geral da República, de ofício ou por provocação do próprio STF, adotar as medidas para reprimir o ato e responsabilizar criminalmente o parlamentar, sem prejuízo de eventuais sanções políticas a cargo da Câmara Federal.
De modo que, observados, em fase processual, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e outros princípios informadores do processo penal, não haveria que se falar em arbítrio ou ilegalidade por parte do STF.
Mas é simplesmente inconcebível que, em uma decisão preliminar e precária, por assim dizer, um juiz da suprema corte atropele de uma só vez as imunidades material e formal de um parlamentar, igualando-nos, nesse particular, ao odioso regime chavista.
Não nutro qualquer simpatia pelo parlamentar em questão e confesso, sem qualquer receio, minha indisposição para ouvi-lo por mais de dez segundos. Todavia, quanto mais detidamente se analisam as circunstâncias em que se deu a sua prisão, mais delineados se revelam os contornos de um ato despótico e incompatível com o nosso sistema de garantias.
Diante desse quadro dantesco, só nos resta indagar: “Afinal, quem guardará os guardiões?”
Paulo Márcio é delegado de Polícia Civil e ex-presidente da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol).
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