Se Cristóvão Colombo descobriu a América, Newton Carlos descobriu a América Latina para o jornalismo brasileiro. Foi pioneiro na cobertura em destaque de golpes e revoluções ocorridas do outro lado da Cordilheira dos Andes. A morte de Newton Carlos de Figueiredo, 91 anos, representa o fim de uma fase marcante do jornalismo internacional.
Após a reforma do Jornal do Brasil, no início dos anos 60 tornou-se o primeiro chefe da editoria internacional do jornal da condessa. Nascido em Macaé e filho de pai contador, ele veio para o Rio na década de 50 e começou a trabalhar no Correio da Manhã. Na Tribuna da Imprensa, dirigida por Carlos Lacerda, foi o repórter que conseguiu comprovar que Samuel Wainer havia nascido na Bessarábia, hoje pertencente à Moldávia, antiga república da União Soviética.
A Constituição de 1946 determinava que somente brasileiros natos poderiam ser proprietários de jornais, o que inviabilizava tê-lo à frente da Última Hora, recém-lançada com o apoio do presidente Getúlio Vargas para enfrentar a oposição de praticamente todos os jornais hegemônicos. Mais tarde uma nova lei passou a admitir brasileiros naturalizados, o que favorecia Adolfo Bloch (Manchete), Victor Civitta (Abril) e o próprio Wainer. Ainda nos anos 50 chefiou a reportagem da revista Manchete.
Minha geração conheceu o trabalho de Newton Carlos assistindo ao Jornal de Vanguarda, criado por Fernando Barbosa Lima na TV Excelsior em 1963 e vencedor do prêmio Ondas como melhor telejornal da televisão mundial. Newton Carlos fazia os comentários internacionais. “E agora com Newton Carlos você está de olho no mundo”, dizia o locutor Fernando Garcia antes de sua participação no JV. Foi também comentarista da Folha de S. Paulo por 25 anos e da TV Bandeirantes durante três décadas, sempre com brilhantismo e muitas vezes na contramão do que informavam as agências internacionais de notícias, que servem aos interesses das grandes potências.
O jornalista Nilson Lage, o professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-professor titular na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com passagem ainda pela UFRJ e Facha, hoje membro do Conselho Consultivo da ABI, conta que conheceu Newton Carlos na Manchete. “Depois da Bloch, fomos nos esbarrando, no Jornal do Brasil, começo dos anos 1960 e, depois, aqui e ali. Dizem dele que era comentarista. A palavra diz pouco: aplica-se, por exemplo, a acadêmicos ricos de ideias e até de vasto patrimônio cultural, mas de modesto contato com fatos recentes. Newton Carlos supria essa deficiência. O homem tinha um arquivo, um Google só para ele. Na época, neste país distante em que as notícias chegam filtradas e podadas conforme variados interesses, era o acesso a diferentes versões dos fatos, não exatamente a sentença julgadora, o que procurava nos textos dele — e o que o distinguia”.
Para o professor Nilson Lage, que chefiou as redações da Última Hora e O Globo nos anos 60 e depois dirigiu o jornalismo da TV Educativa, a imprensa brasileira de uma forma geral pensa em inglês e escolhe um lado, mas a postura de Newton Carlos funcionava como uma espécie de contraponto do jornalismo engajado que se traveste de independente.
Desde a República Velha era considerado de bom tom abrir espaço para o noticiário internacional, mas os textos editados se limitavam a cópias de telegramas enviados pelas agências. Daí a expressão “corta e cola” típica do jargão antigo do jornalismo. Em entrevista a estudantes de Comunicação Social da UERJ para o projeto Memória da Imprensa Carioca, em 2002, o próprio Newton Carlos reconheceu que a intervenção do redator era pequena.
“Eu mesmo passei um tempo no Diário Carioca fazendo uma página inteira de notícias internacionais com o que se chamava de colagem de telegramas. Escolhia-se a notícia, colava-se e pronto. Mas, no Jornal do Brasil, não. Instalou-se uma editoria, o que significava trabalhar jornalisticamente os fatos internacionais, com uma visão brasileira. A partir dessa editoria é que se criaram os departamentos de pesquisa. Eu me lembro quando recebi a notícia de que tropas norte-americanas tinham entrado em combate no Vietnã. Nessa época eu era o editor internacional do Jornal do Brasil. Olhei aquilo e pensei “mas que diabo é o Vietnã?” Então, fomos até uma enciclopédia, procuramos alguém que soubesse algo a respeito do país e publicamos a notícia para explicar que conflito estava acontecendo e para dizer o que era o Vietnã. A intenção era complementar a notícia e não nos limitarmos a publicá-la sem dar a ela a sua devida dimensão. E foi com esse espírito que a editoria cresceu”, explicou Newton Carlos, que deixou o Jornal do Brasil em 1964. Foi trabalhar na Europa para uma organização sindical de trabalhadores não atrelada aos interesses da União Soviética. No dia 31 de março, ele estava em Genebra, na Suíça, acompanhando a 1ª Conferência da UNCTAD (Nações Unidas para a Economia e para o Desenvolvimento).
“Para você ter uma dimensão da conferência, quem estava representando Cuba era o próprio Che Guevara. A delegação brasileira era dirigida por um embaixador que conversava muito com o Guevara. O Brasil, naquela época, tinha uma política externa bastante independente. Em uma das conversas do embaixador com Che Guevara, ouvi o Che dizendo “cuidado!” e o embaixador respondeu: ‘não, os militares brasileiros são militares do povo’. Eu me lembro que quando o golpe aconteceu, estava com este embaixador quando o Che veio se aproximando e gritou “Jaime!” – era o Jaime Azevedo – “Los militares ni los soldados, nada, nada”. Nunca me esqueci disso. Fiquei na França algum tempo e tempos depois voltei. A partir daí eu nunca mais trabalhei fixo em redação.
Na mesma entrevista concedida aos alunos da UERJ, Newton Carlos recordou-se do dia em que o presidente Costa e Silva decretou o Ato Institucional número 5, 13 de dezembro de 1968. Na época, ele trabalhava no Jornal de Vanguarda.
“Nós estávamos na redação na TV Rio, que ficava ali no Posto 6, em frente àquele quartel de Copacabana. Alguém telefonou da portaria e disse “olha, eu sou da União Metropolitana dos Estudantes e preciso entregar uns documentos ao senhor”. Eu avisei que o jornal estava fechando, mas autorizei a pessoa a subir. Trabalhava conosco a Ana Arruda, uma das primeiras mulheres a trabalhar em jornal no Rio de Janeiro. Ela tem uma história muito importante na imprensa brasileira. Quando o rapaz apareceu na porta, a Ana virou-se e disse “Newton, com esse cabelo, não é estudante”. Aí, eles fizeram uma espécie de parede humana. Ana Arruda, que era e continua sendo esquentada, foi discutir com o rapaz: “Não, ele não pode sair daqui agora, nós estamos fechando o jornal’. Alguém me disse: ‘Vai por trás, tem um muro que dá na avenida Copacabana. Pula, cai fora!’. Eu fugi e fui escutar o noticiário. Nem sabia o que estava acontecendo. Só aí fui escutar a notícia sobre a edição do AI-5.”
Nesta segunda-feira, 30 de setembro, na reunião do Conselho Deliberativo da ABI, quando Marcelo Auler anunciou a morte de Newton Carlos, fez-se um minuto de silêncio. Mas a verdadeira homenagem é eternizá-lo na memória dos colegas mais jovens que desejarem seguir seus passos como correspondentes internacionais. Newton Carlos deixou três filhas, uma delas – Janaína Figueiredo – que atuou como correspondente do Globo para a América do Sul durante 19 anos.
João Batista de Abreu é professor titular do curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense, conselheiro suplente e membro da Comissão de Educação da ABI. Com colaboração de Pedro Aguiar, professor de Jornalismo Internacional da UFF.
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